quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Renascimento

Ontem eu acordei sabendo que seria um dia mais corrido que os demais. Não sabia, porém, que aconteceria algo que mudaria a maneira como eu enxergo a própria vida.

Vamos pelo começo.

Acordei, fui para o trabalho, trabalhei (bem...). Saí do trabalho, fui pra aula andando, fiquei por uma e meia em pé segurando um baixo acústico gigante. Saí de lá, caminhei por alguns aclives até o metrô, fui até a Vila Madalena, andei mais um pouco, peguei um ônibus. Contei errado o número de pontos, o ônibus desembestou-se por uma ladeira desconhecida e escura e me largou em um pedaço desconhecido de São Paulo. Eu estava cansado. Olhei para os lados, procurei transeuntes. Só o cara que desceu no mesmo ponto que eu. Sutilmente, saquei o celular e abri o Google Maps. Tem que ser discreto, você nunca deve mostrar que está perdido. Digitei o endereço do meu destino e ele traçou uma rota a pé. Olhei novamente ao redor. Você nunca deve mostrar que está perdido. Vou andando, celular abaixado. Tem que ser discreto, você nunca deve mostrar que está perdido. Vou conferir e encosto sem querer no botão de iniciar a navegação. Uma voz no celular começa a gritar "CAMINHE 300 METROS NA DIREÇÃO DA RUA TAL" enquanto eu ficava desesperadamente tentando desligar aquilo e sussurrando filhadaputafilhadaputafilhadaputa. Tem que ser discreto, você nunca deve mostrar que está perdido.

Andei até o local, consegui chegar. Eu estava cansado. Fiquei lá por duas horas, nesse meio tempo choveu uma chuva horizontal e raios verdes pintaram o céu (eu juro). Fui embora, caminhei até a avenida, peguei um ônibus. Eu estava cansado. Desci do ônibus, andei numa calçada lisa, escorregadia e desnivelada. Um pé, outro pé, um pé, outro pé, um pé, chão. Meu pé direito tentou trocar de lugar com o esquerdo e por consequência minha lateral tentou trocar de lugar com a calçada. A rua estava vazia, mas eu ouvia os risos. Tem que ser discreto, você nunca deve mostrar que está ferido. Levantei e segui até o metrô. Eu estava cansado.

Começo a sentir os efeitos da queda. A dor, o formigamento, a intermitência nos sentidos. Há uma sensação líquida no meu tornozelo. Olho e vejo a meia encharcada de sangue. Muito, muito sangue, o suficiente pra salvar duas vítimas de acidentes. Quem vai me salvar agora, o moribundo do metrô com sangue O- manchando-lhe as vestes. Mando uma mensagem de socorro, mas enfrento apenas zombaria. Sinto minhas forças me deixando, ouço o som de anjos cantando a introdução de Kiss from a rose. Vejo a luz no fim do túnel. Estou chegando ao Paraíso.

Depois do Paraíso, cheguei à Ana Rosa, e depois Chácara Klabin e Santos-Imigrantes. Cambaleante, cheguei até a minha casa. Consegui limpar e estancar a ferida, tomei banho e dormi. Eu estava cansado. E hoje... hoje eu acordei. Perdi a hora, mas ganhei a vida. Hoje, três de setembro de dois mil e catorze, eu posso dizer que renasci às nove e trinta e três da manhã. Atrasado para o trabalho, mas nunca é tarde para recomeçar. Tenho agora uma vida nova à minha frente, e vou aproveitar cada segundo, porque se antes a vida só tinha me ensinado a morrer, ontem a morte me ensinou a viver. Esse blog se chamará, a partir de agora, Vida Maravilhosa. Fiquem comigo, temos uma linda jornada pela frente.


sexta-feira, 29 de agosto de 2014

História de fantasmas

Eu tive o mesmo celular velharia por quase quatro anos (a história dele, para recordar, começa aqui e termina aqui) e o deixei para repouso eterno nos primeiros dias de janeiro nesse mórbido 2014. Repouso eterno, no caso, é tirar o chip, desligar e deixar esquecido em cima da mesinha do computador. As pessoas diziam "joga fora, é perigoso". Eu ignorei, afinal que perigo pode haver nisso? Eu achava que sabia de tudo. Eu não sabia de nada.

Duas semanas atrás, primeiras horas da noite. No meu quarto a luz está apagada e só vejo os pontinhos brilhantes dos aparelhos em stand by. Converso com meu pai no telefone sobre as coisas da vida. A voz dele vacila, ele não sabe por quê (mentira). Ouço um ruído grave. Uma luz se acende, apontando para o teto. Toca uma música suave, quatro notas repetidas. Estou confuso, meu pai fica preocupado. Absorvo coragem de um abraço apertado no meu travesseirinho do São Paulo em formato de flor e vou atrás da fonte de perturbação. É o celular antigo. Simplesmente ligou, oito meses depois, para tocar o despertador. O horário marcado era 8h10 da manhã. Não estava nem próximo desse horário. Minha segurança me trai, deixo o celular novo cair no chão. Ouço baixinho uma voz gritar, lá de baixo: "filhão? Filhão? Filhãããão"

"Oi"

"Ah, taí? Beleza"

(mentira)

Conto a história, ele acha estranho. Acendo a luz do quarto, só por precaução. Aperto o botão de desligar o despertador. Que loucura. Eu hein.

Segue a vida. No dia seguinte, novamente o celular liga e desperta. 8h10. São 19 e alguns minutos. E assim no outro dia. E no outro. Eu não tiro a bateria. Algo me impede. O que será? Passa uma semana. Duas.

O fato de esse celular ter permanecido em coma induzido por oito meses e começar a dar sinais tortos de vida agora me fascina. Nunca me liguei em fenômenos metafísicos ou experiências extra-corpóreas; nada disso me entra na cabeça. Acredito na ciência (e na sua falibilidade), acredito no que pode ser explicado sem apelar para a fé, acredito que a música é matemática e que a vida acaba e nós seremos devorados pelo esquecimento. Eu sempre contrapus essas questões como se elas fossem diametralmente opostas: fé ou ciência, doutrina ou tecnologia. E então eu via, bem à minha frente, com luz e som, céu e inferno se chocando, preto e branco se fundindo sem virar cinza. O que acontece no meu quarto não é só um telefone celular tendo um comportamento inesperado (que, paradoxalmente, é o que sempre se espera de um desses); o que acontece no meu quarto é um clamor desesperado. De todos os fantasmas das tecnologias passadas.

Eu ouvi ali, em quatro notas repetidas, os seus lamentos, o ranger de suas engrenagens, o zumbir de seus radiadores, o clicar de seus botões, o batucar de seus cascos, o metralhar de suas teclas, o arranhar de suas agulhas, o shlop shlop de seus moinhos. Eu ouvi a obsolescência, ouvi o chiado da ligação passando pelo túnel do tempo. Eles encontraram o portal para o presente naquele celular velho largado num quarto com Game Boy Colors e mouses com fio, e eles gritaram por atenção, e eles exigiram como exigem aqueles que já prestaram tantos serviços e construíram a sociedade como ela é hoje. E eu ouvi seu apelo, seu último desejo: uma derradeira volta pelo mundo que os esqueceu, uma última poesia em T9 no mundo que escreve tweets por comando de voz.

E eu joguei fora aquele negócio. Vá chantagear a puta que o pariu.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Comunicação não-verbal

Desde pequeno eu tenho compensado meus baixos índices de interação com o mundo ao redor usando a imaginação. Na minha infância era mesmo um coisa tipo O Fantástico Mundo de Bobby, com coisas incríveis acontecendo onde só havia previsão do tempo e inflação descontrolada, mas depois que eu fiquei adulto e morri por dentro meu cérebro tem funcionado apenas para tapar os buracos das minhas avenidas sociais com asfalto imaginário. O que, como você deve ter deduzido, não é lá muito útil.

Em algum lugar dessas praticamente três décadas de desserviços prestados à dignidade da minha família eu meio que perdi o controle do que está de fato acontecendo e do que é o meu cérebro renderizando coisas, como se a linha que existe entre a vida real e a minha imaginação ficasse meio indefinida, meio vacilante. E desde então minhas interações sociais tem sido um tanto complicadas.

O caso mais comum é esse: eu passo por alguém conhecido, digo "bom dia". Mas aí, depois de passar, percebo que não disse em voz alta. Como também não tenho o hábito de olhar para ninguém, como se cada pessoa fosse um sol e olhar diretamente fosse me deixar cego, o cara não tem como saber que eu sequer admiti a presença dele naquele momento. Na minha cabeça eu passei, falei bom dia, fiz uma piada sobre a rodada do fim de semana, rimos, somos melhores amigos agora. Mas pra ele eu só passei direto e grunhi. Sujeito escroto, esse careca.

Reconhecendo essa minha inabilidade, comecei a tentar adicionar novos artifícios ao processo de comunicação. Levantar as sobrancelhas. Olhar na direção da pessoa, mesmo que seja pra baixo. Dar uma erguidinha na cabeça, naquele gesto universalmente reconhecido como "opa". Falar em voz alta era uma opção, claro, mas como já cansei de ser traído pelo meu cérebro, estava contando que ao menos meus músculos fossem me ajudar (o que é o equivalente às autoridades palestinas esperarem que seus cidadãos consigam desviar os mísseis israelenses usando pedras).

E olha, até que funciona. Mas depende da pessoa olhar pra mim, o que nem sempre acontece. Ou então rola aquela parada muito chata de eu estar vindo numa direção, ela em outra, a gente se vê muito de longe, eu abaixo a cabeça na hora - socorro - e a mantenho abaixada até chegar perto, aí eu levanto e a criatura não tá mais olhando pra mim, de modo que parece que eu fingi que não conhecia quando vi de longe. Sujeito escroto, esse careca. Mas funciona boa parte do tempo, só que cria outro problema: muita gente nem sabe como é a minha voz.

Eu sou um cara meio complexado, talvez dê pra perceber. E não sou particularmente fã da minha voz. Então depois da pessoa ver minha cara e minhas sobrancelhas psicoticamente levantadas por seis meses, eu tenho uma certa vergonha de abrir a boca e botar essa voz de demente pra fora. Ora - e aí volta minha imaginação - se o cara preserva tanto essa voz ele deve ser o novo Frank Sinatra. Talvez a voz dele seja tão espetacular que ao projetá-la ele afeta diretamente o equilíbrio do ambiente, os motoristas perdem o controle e batem seus carros nos postes, as ruas ficam sem luz, os pássaros perdem suas casas e confusos são atacados pelos gatos que pulam das varandas dos apartamentos pra capturá-los e acabam se estabacando no chão, provocando um trauma profundo no seu dono que agora só tem mais onze gatos e você não pode ter só onze gatos porque os filhos do pássaro que foi assassinado vão querer vingança e isso vai danificar seu apartamento e deixar um vazamento de gás que vai causar um incêndio no prédio e daí se espalhar pela vizinhança e os caminhões de bombeiros não poderão chegar perto porque há uma barricada de postes caídos travando a rua, alguns deles com fios rompidos eletrocutando os moradores que tentam fugir de qualquer maneira e no meio dessa confusão Israel começa a atacar o Brasil também porque estamos distraídos e sem o Neymar e o Thiago Silva e onde estão as pedras MEU DEUS ONDE ESTÃO AS PEDRAS?!

Sujeito escroto, esse careca.

terça-feira, 22 de julho de 2014

Minha profissão

Perguntar não ofende, mas algumas perguntas nos deixam mais desconfortáveis que outras. Isso vai de cada um: tem gente que não gosta de ser questionado sobre sua vida particular, tem gente que não quer dar satisfação sobre onde esteve na noite passada, tem gente que não consegue responder pra uma criança de 6 anos o que aquele moço que não é o pai dela está fazendo pelado debaixo da cama. E tem gente que é aberta a tudo, a quem não falta articulação para falar sobre qualquer coisa, para quem nenhum assunto é tabu. Mas esse blog nunca foi sobre gente que não tem nada a esconder.

Há dois meses eu estive com meus desafortunados companheiros de banda gravando um programa de TV que teve, além da parte em que a gente maltrata as cordas dos instrumentos e os ouvidos da audiência, uma entrevista com todos (não me perguntem como ficou, eu não vi, graças a deus). Em dado momento o cara quer saber qual a profissão de cada um (ele inferiu que uma coisa que a gente não poderia ser era músico profissional) e eu me liguei que essa é uma das tais perguntas que me deixam desconfortável. Mas por quê?

A primeira suposição, claro, é a de que eu tenho vergonha da minha profissão. Mas não é exatamente verdade. É um trabalho honesto, paga minhas contas, eu consigo fazer relativamente bem. Não é aquele tipo de profissão que te dê bônus de carisma, que gere inveja/admiração alheia ou que abra portas normalmente fechadas para os civis ordinários, mas poderia ser muito pior, como os outros dois caras da banda que tiveram que dizer que são publicitários.

Comecei a puxar pela memória. Lembrei que anos atrás, quando alguém perguntava, eu dizia que era desenhista. E responder assim a esse tipo de pergunta é quase garantia de receber em seguida um olhar piedoso ou de desprezo. Eu não era desenhista, nunca fui, mas achava melhor responder isso do que a verdade. Mas ora bolas, se eu não tenho vergonha da minha profissão de verdade, por que dizia outra?

Segunda suposição: eu tenho vergonha de dizer que tenho um trabalho que seja parte do "sistema". Quem me conhece sabe que eu não tenho nenhuma camiseta do Che Guevara e que acho o Rage Against the Machine uma banda boa, não mais que isso. Eu sou um revolucionário em conflito: torço pelo caos, mas rezo ajoelhado pela ordem. Falamos sobre isso outro dia. Nem eu nem ninguém espera de mim essa atitude combativa de gritar contra o capitalismo e pixar muros de empresas, e assim um empreguinho estável sob as asas quentinhas de um CNPJ não me contradiz e ainda me cai bem.

Então eu me toquei que o problema não era dizer qual é o meu emprego: é admitir que eu tenho um emprego. É mais um processo de autoconvencimento: ser desenhista também é um emprego (ou pode ser), mas pra mim sempre foi hobby e diversão. Na verdade, o momento em que eu comecei a cobrar por isso foi o momento em que desenhar virou um porre. Eu gosto do trabalho, acho ele fundamental pra retardar o processo de morrer por dentro - que é pior do que a outra morte, a que a gente faz mais esforço pra adiar. Mas a ideia de ter um emprego, de oferecer a uma atividade que eu sou competente pra fazer a responsabilidade pela minha subsistência, é um negócio meio pesado pra quem tem procurando sistematicamente se negar a crescer. Eu não me preparei para a vida adulta e nem quero essa desgraça. Mas essa é a única mecânica que, na falta de coragem para viver a vida livremente, me possibilita ter sempre refrigerante na geladeira e jogo novo no Steam. É um equilíbrio que eu ainda estou buscando, mas não sem passar um certo desconforto nesse meio tempo.

Tanto é que eu terminei o texto e ainda não falei no que eu trabalho.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Obrigado, Harry Potter

25 de novembro de 2001, domingão à tarde, ligam lá em casa. Vamo ver o filme do Harry Potter, querem ir? Queremos. Meu irmão e minha prima liam os livros, gostavam e tal, e eu achava a experiência de passar uma tarde de domingo no cinema sempre divertida, qualquer que fosse o filme. Pois lá passamos duas horas e alguma coisa aprendendo sobre bruxos jovenzinhos que vão pra escola e jogam bola em cima de uma vassoura. Pra ser sincero, achei tudo uma bobeira sem fim, mas qualquer atividade era melhor que ficar em casa desenhando, como de costume.

Na volta a gente desceu na casa da prima e do primo, e na TV passavam os minutos finais do jogo sagrado de domingo. Mas o resultado na tela foi uma cacetada nas minhas pretensões de vida: Vasco 7x1 São Paulo. Minhanossassenhora, como foi que isso aconteceu? Rogério foi expulso, diziam os comentaristas, aí entrou o Alencar, maior frangueiro que eu já vi no futebol profissional. E por um peruzeiro no gol contra o Romário é garantia de massacre. Fiquei meio zonzo, meio atordoado, mas por pior que fosse, não chegava a ser tão terrível. Pior seria assistir o jogo inteiro, ver cada gol acontecendo, cada bola entrando, cada cagada da defesa, cada comemoração da torcida adversária. Ver só o resultado no final é como ler uma notícia sobre uma catástrofe, que você pensa "oh não, que coisa terrível" mas secretamente agradece que não foi com você. E por isso eu só podia direcionar meus agradecimentos a ele: Harry Potter. Se eu fosse crítico de cinema, teria adicionado mais uma estrelinha pro filme na hora. Vida longa a Hogwarts, quadribol é melhor que futebol, vai Grifinória (ou qualquer que seja o nome daquela que tinha os mongolão, que era mais o meu perfil).

De lá pra cá, muito mudou. O São Paulo ganhou três títulos nacionais, o Vasco foi rebaixado duas vezes, os livros do Harry Potter acabaram, os filmes do Harry Potter acabaram (não com a minha audiência), a Hermione cresceu (com a minha audiência), eu parei de desenhar e ir no cinema perdeu um pouco da graça. Foram 12 anos e meio, e só agora eu me senti confortável pra falar sobre esse assunto, sobre essa goleada tão acachapante, tão desmoralizadora, tão voldemortesca.

Então em 2027, se eu ainda estiver vivo e se esse blog ainda existir, a gente conversa sobre o que aconteceu essa semana.

sábado, 5 de julho de 2014

Um lugar na história



Eu sei que já escrevi isso por aqui antes, mas vamos lá: eu adoro Copa do Mundo. E apesar de essa estar sendo, até aqui, sensacional - ao menos desportivamente - eu ainda via um certo problema de encaixe histórico nessa seleção brasileira que não a credenciava ao título. E por "credenciar" eu quero dizer que eu não aceito, não com essa bolinha aí.

Estou sendo babaca, já aviso agora. O que eu quero dizer é que, dado o meu apreço pela história das Copas, eu posso tender a ser meio superprotetor com quem eu acho que tem o direito de ser campeão (e eu entendo que se há uma coisa que não tem o menor impacto nisso tudo é a minha opinião). Cada Copa precisa ser uma história, e cada campeão precisa ser um carregador digno dessa bandeira. Ou por se impor tecnicamente sobre os demais (Brasil em 58 e 70), ou por oferecer um desfecho trágico àquele que se impõe (Itália em 82, Alemanha quase sempre), ou por oferecer à conversa o grande craque que se torna o símbolo da conquista (Maradona em 86, Romário em 94, Zidane em 98). E a seleção brasileira dessa Copa de 2014 não tem nada disso: é um time fraco, não-competitivo e cujo tal craque ainda carecia de se demonstrar à altura da tarefa.

Mas então o Brasil jogou contra a Colômbia pelas quartas de final e fez uma boa partida, claramente melhor que as anteriores, claramente insuficiente ainda do ponto de vista técnico. A Colômbia era um grande adversário por ser, essa sim, uma seleção que já havia ocupado seu espaço na história. Vencê-la era um ponto fundamental para o Brasil almejar a mesma coisa, mas ainda não era tudo. Até que no segundo tempo de um jogo em que imperou a lei do sarrafo (de lado a lado) o lateral Zuñiga tentou subir uma escada invisível mas foi deselegantemente interrompido pelas costas de Neymar, encerrando a participação do craque canarinho na Copa que era pra ser sua. Zuñiga e seus familiares foram xingados e ameaçados de morte e outras violências naquilo que há de ser deus testando a humanidade e esta falhando miseravelmente. Faltam escolas no país, é verdade, mas tem faltado também a boa e velha educação que se recebe em casa.

Sem Neymar, lamento dizê-los, o Brasil é um time tão capaz de vencer uma Copa do Mundo quanto eu sou de namorar a Bruna Marquezine. E foi assim, com uma joelhada nas costas e uma lesão infeliz, que a seleção brasileira paradoxalmente se encaixou no fluxo da história e se tornou merecedora do título, ao menos nos meus exigentes critérios.

A seleção brasileira é muito ruim. Meu deus, horrível. Tem dois zagueiros fabulosos, mas também tem o Jô, provavelmente o pior jogador a calçar uma chuteira em todos os tempos, e olha que eu já calcei uma. Mas um time desses vencer a Copa, apesar de todas as suas limitações, impulsionado apenas pelo apoio popular e pela vontade de entregar essa taça a um dos seus (o que é bem diferente de vingança, seus filhos dumas puta) é justamente o que tornaria esse título espetacular, uma das melhores histórias a se contar sobre uma Copa do Mundo. Não seria o Brasil de 70 nem a Argentina de 86, mas seria melhor ainda: seria como o Uruguai de 50.

E isso seria provavelmente o desfecho mais poético de todos: ganharíamos finalmente o mundial em nossa própria casa, exatamente da maneira como perdemos a primeira vez. Dessa vez não seremos vítimas do Maracanazo, mas AGENTES dele. A partir de agora, eu estou proibindo qualquer outro time de ganhar essa Copa: seria um crime contra a história. O futebol é técnica e tática, mas é, antes de tudo, um livro cheio de páginas em branco. Seria escrotice escrever uma história ruim nele.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Orkut

Eu entrei no Orkut acho que em 2004, e me matei em 2005. Na época as coisas eram diferentes, redes sociais eram novidades e as pessoas até usavam termos hoje obsoletos como "web 2.0" e "urru novo jogo do Sonic". Pra entrar no Orkut você precisava ser convidado, uma dessas babaquices exclusivistas que existem desde sempre na internet porque tem pessoas que querem se sentir importantes. E pelas estalactites de mágoa que se penduraram na frase anterior você deve ter adivinhado que eu tive alguma dificuldade pra participar do negócio.

Não vou negar: eu acessei o Orkut do meu irmão e me convidei. Comecei minha carreira nesse universo das redes sociais como um larápio que ganha acesso a um local para onde não foi convidado porque esse mundo não foi feito para essa gentalha. E eu percebi isso depois de pouco tempo: o Orkut era como uma festa em que o único lugar confortável para você é o canto da parede. Era muita amizade, muita curtição, muitos scraps, muitos depoimentos. Eu só tive um depoimento: "Padula, você merece mais do que essa vida miserável que você leva". Obrigado, amigo.

Como eu nunca me dei mesmo à interação social, pulei do topo do prédio e enterrei meu crânio no esquecimento digital. Como diziam, se você não estava no Orkut você não era ninguém, e essa função me cabia melhor. Voltei às redes sociais vários anos depois, porque a gente envelhece e amolece, mas nunca me senti totalmente à vontade ou tive certeza de que estava me comportando direito (o Twitter deve servir pra mais coisas do que apenas xingar os jogadores do São Paulo gratuitamente, por exemplo). E então essa semana surgiu a notícia de que o Orkut será finalmente encerrado no dia 30 de setembro.

E eu criei uma conta nele.

Senhores, não quero ser palhação (embora eu seja) ou saudosista brega (embora eu seja embora eu seja). Mantenho minha posição inicial: esse mundo de gente feliz, sorte do dia e o que falar desse cara que eu mal conheço mas já considero pacas continua não sendo pra mim. Porque eu não gosto de gente feliz, não gosto de sorte, não gosto de dia e posso garantir que o melhor é que eu mal conheça esse cara, porque me dá mais uma semana e eu não vou gostar dele também. Mas vocês sabem o que é o Orkut hoje? Um mundo que já viu o apocalipse e agora vê o rastro vermelho do cometa vindo terminar com tudo.

Não há mais jovens e hormônios. Eu ando no chão poeirento e piso em cadáveres, em corações e gelinhos despedaçados, em gifs animados e flyers de balada. Eu vejo pessoas conhecidas congeladas, com a aparência de 10 anos atrás. Eu passo na frente de um grande coliseu chamado "Eu odeio as segundas-feiras", aos pedaços. O céu é sempre vermelho, o silêncio predomina.

Essa é uma rede social pra mim, caro leitor. Gélida, vazia, com todos os componentes que simulam um universo fantasioso adequado à minha imaturidade. Eu nem fico zanzando, procurando conhecidos ou explorando comunidades. Só fico lá, no silêncio. É agradável. E o fim do mundo é um cenário que me fascina - não lembro se postei aqui sobre isso, mas já escrevi uma música -, de modo que eu não poderia escolher um lugar melhor pra sentar numa cadeirinha de praia e ver o horizonte se desmanchando.

Óbvio que nada disso vai acontecer de verdade, mas essa é uma das vantagens de ser um bobão: as coisas são bem mais legais na minha cabeça.

segunda-feira, 30 de junho de 2014

O Mario Kart, a Copa do Mundo e a prótese de silicone emocional

Já tem alguns dias (ou semanas) que toda minha atividade cotidiana foi drasticamente reduzida a apenas acompanhar a Copa do Mundo (os jogos, entre eles as entrevistas, depois deles os debates) ou jogar Mario Kart 8, numa espécie de hibernação contraproducente que, infelizmente, há de acabar.

E se digo infelizmente é, na verdade, por uma confusão de significados: embora eu esteja desanimado com a perspectiva de uma vida sem futebol o dia inteiro e sem personagens novos pra desbloquear, essa tal rotina de momento tem me feito, se tanto, infeliz. E eu estou achando muito bom.

Eu sou quase um robô, uma criatura mecânica sem a capacidade de amar criada somente para uma missão: falhar miseravelmente. Confesso que tenho uma certa dificuldade com sentimentos: embora eu já tenha me declarado chorão (digo, um amigo meu) em outro texto, as lágrimas funcionam muito mais como uma resposta genérica a um estímulo com o qual eu não estou confortável (praticamente todos eles) do que um arroubo emocional não planejado. Eu reajo muitas vezes mais de acordo com o protocolo social do que por espontaneidade, visto que, na prática, eu não sou muito capaz de sentir qualquer coisa além de calor e vergonha.

Talvez nesse ponto esteja parecendo que eu sofro da síndrome de Asperger, mas considere que eu exagero um pouco as coisas.

E é aí que entram o futebol e o videogame. Com todos os jogos maravilhosos que tem acontecido nessa Copa, eu posso sentir a adrenalina, a vibração, as emocionantes jornadas de gigantes que tombam e dos guerreiros que os derrubam, do herói que renasce das cinzas da incerteza para retornar à desgraça de sempre, do capitão que perece afogado em suas próprias lágrimas. Cada jogo é um pequeno épico, é um novo conto, e eu me aproprio de toda essa miríade de emoções como se elas fossem minhas de nascença e de direito. É uma prótese de silicone sentimental, alguém poderia dizer.

Porque assim como a moça que não está satisfeita com suas dimensões mamárias ou o rapaz que nasceu com a coisa errada entre as pernas, eu estou aqui tentando preencher uma lacuna pessoal com artifícios produzidos, de certa forma, em laboratório. A humanidade tem avançado para isso, e que deus abençoe os malditos ingleses ou os pais do Miyamoto por permitirem a esse homem de lata o direito a sentir coisas. Por outro lado...

Por outro lado o mundo é cruel e filho da puta. E o universo, ah, ele há de te arrebentar. E os jogos folclóricos divertidos urru que maravilha é o futebol se transformam em prorrogações, bolas na trave e Daniéis Alveses. E o Mario Kart carros coloridos pistas divertidas música feliz fatalmente se converterá em onze gringo na internet jogando casco vermelho e verde e azul na sua bunda bem quando você vê a porta da glória lhe sorrindo, mas você não consegue sorrir de volta. Cuidado com que desejas pois... alguma coisa. Eu queria sentimentos, e todos eles vieram na forma de sofrimento e dor.

Mas é melhor que nada. E é por isso que lamento por antecipação o fatídico dia em que um ricaço levantará uma taça dourada e que a última rodinha do kart estará disponível no menu. Ao menos a moça peituda e o rapaz que deixará muitos bêbados arrependidos poderão usufruir de seus apêndices artificiais pelo resto da vida. Já eu continuarei no meu esvaziamento habitual.

Pelo menos até sair o próximo Smash Bros :D

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Gol roubado


Quando estreou na Copa de 2002, a seleção brasileira venceu a Turquia com um gol descabeladamente roubado, e eu não comemorei. Na verdade, não comemorei mais nenhum gol até o jogo contra a Bélgica, que também se viu prejudicada pelo apito amigo verde e amarelo. Sendo assim, também não vibrei com o segundo gol do Neymar hoje, fruto de um pênalti tão sem vergonha que vai conhecer os pais da namorada e bebe o whisky do sogro e passa a mão na bunda da sogra. E não me agitei no gol do Oscar, mas isso pode ser porque eu odeio esse filho da puta e quero que o calção dele pegue fogo na hora do exame antidoping.

Mas se fosse um jogo do São Paulo, olha só, a história seria outra. Se o tricolor ganhasse de 5 a 0 com cinco gols roubados eu comemoraria todos eles e no final ainda beijaria o juiz (se eu torcesse pra outro time seria só a parte da comemoração). Mas isso não porque eu quero que o São Paulo ganhe, mas porque eu PRECISO que o São Paulo ganhe. É uma questão de saúde, naquele ponto em que você tolera pequenas desonestidades em troca de algo mais importante, como a mãe que rouba comida pros filhos não passarem fome.

Só que a seleção é a minha possibilidade de acompanhar o futebol como ele deve ser visto: de maneira saudável, amigável, bacana, sem que eu termine com tremedeira ou apontando uma faca pra garganta de alguém. É minha chance de conhecer o que há de maravilhoso no futebol, de vê-lo como um bolo de chocolate e não como um cachimbo de crack. E aí, já que eu estou de turista no Pão de Açúcar do esporte e sou uma pessoa fundamentalmente honesta, me dói ver esse tipo de coisa: o cara que se joga no chão, o juiz que é um jumento, o adversário que jogou limpo e levou no cu mesmo assim.

Claro que eu não acho que a Copa está comprada e esse tipo de coisa. Você pode dizer que eu sou inocente, mas vou lembrá-lo de que eu sou mais esperto que você. Mas, poxa vida, com tanta coisa escrota envolvida no planejamento, na execução e no submundo político da Copa, a única coisa que salva nela - o esporte em si - devia rolar sem peso na consciência depois. Vejamos o que vem daqui pra frente.

(na categoria karma ruim vale lembrar que depois de levar aquela Copa com o gol de mão do Maradona a Argentina nunca mais ganhou nada, então cuidado aí)

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Por que eu vou torcer pelo Brasil na Copa

Quatro anos atrás, nos dias que antecediam a Copa da África do Sul, eu publiquei um texto chamado "Por que eu vou torcer pela Argentina na Copa", motivado por essa mania besta em período pré-mundial de despejar sentimentos negativos em cima dos vizinhos que além de não ter nada a ver com a baixa autoestima do Galvão Bueno ainda sequer podem ser considerados um rival à altura da seleção brasileira, convenhamos. Esse post também é um dos campeões de audiência do blog, ganha um doce quem adivinhar o motivo.

E então não deixa de ser divertido perceber que quatro anos depois eu não só estou repetindo o assunto como ainda estou mudando o objeto do post para, justamente, a seleção do país onde eu nasci. São circunstâncias do tempo. Torcer contra a seleção não é mais apenas a melancia no pescoço do sujeito que é meio pamonha e precisa chamar a atenção, agora é uma posição política, um manifesto contra os absurdos feitos e desfeitos nos últimos sete anos por quem deveria fazer dessa Copa um evento que colocasse o Brasil de vez no primeiro escalão nas nações do mundo. Foda-se a Copa, eles bradam, foda-se a seleção brasileira! Um professor vale mais que o Neymar!

É por todo esse contexto e essas circunstâncias que eu achei que devia, portanto, esclarecer a minha posição. Dados todos os acontecimentos e o peso político do maior torneio do maior esporte do maior planeta rochoso do sistema solar, eu decidi vir a público esclarecer por que eu vou torcer pelo Brasil na Copa:

Porque eu quero.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Barcelona x São Paulo: a batalha final

Cheguei da minha superviagem há três dias e ainda estou tendo que me readaptar aos costumes de nossa terra natal (pra ser exato, o meu relógio biológico é que ainda está no fuso horário errado). Mas passada a euforia que se apodera de nós no momento do retorno e o consequente banho de água fria com duas horas pra sair do aeroporto + uma hora e meia de trânsito + o chuveiro pegar fogo + gripar, agora já dá pra avaliar melhor as características principais da adorável cidade de Barcelona. E, como tudo fica mais fácil de compreender a partir de uma referência, decidi por a capital da Catalunha e a capital do estado de São Paulo para competirem numa batalha intensa e sangrenta pelo título de melhor cidade em que eu já passei mais de uma semana (são as únicas).

Vamos às regras: as cidades competirão em uma série de categorias, sendo desde conceitos gerais até desafios específicos. A cidade que vencer a categoria ganha um ponto, e ao final do post vence quem tiver mais pontos. Simples.

Já aviso aqui que não pretendo ser parcial ou piedoso. Meus critérios são muito sólidos e meu julgamento se baseará somente em fatos, evidências, números. Nada de opiniõezinhas, nada de "eu acho que". Estamos lidando com coisa séria aqui.

Sem mais, vamos à SUPERTAÇA MUNDIAL DE CIDADES 2014 (clap clap clap clap clap):


FC Barcelona x São Paulo FC

Primeiramente devo explicar que, embora haja mais equipes de futebol em cada uma das cidades, eu escolhi apenas as relevantes (ninguém ia querer ver um desafio entre Espanyol e Palmeiras, pelamordedeus). O Barça é o orgulho da cidade: em toda esquina há uma loja oficial do clube, e entre as esquinas há diversas lojas vendendo produtos piratas. Fundado em 1899, é hoje um dos maiores clubes da Europa e o maior vencedor do continente nos últimos anos. Sua camisa já foi vestida por craques históricos como Maradona, Romário, Stoichkov, Laudrup, Ronaldinho Gaúcho e Messi e o Camp Nou, seu estádio, é o maior da Europa. Foi bucentas vezes campeão espanhol, duas vezes mundial e os quatro títulos europeus são expostos com destaque e orgulho no museu do clube.

Mas nada disso os impediu de levar dois cacetes do São Paulo de Telê e Raí.

Ponto para São Paulo.


Tibidabo x Pico do Jaraguá

O Tibidabo é uma montanha que recorta toda a margem oeste de Barcelona, o que é particularmente útil quando você é um turista panaca que vai entrando em qualquer viela e não sabe como voltar depois. No topo da montanha tem uma igreja, no topo da igreja tem um Jesus, e lá é alto pra caralho. Também tem um parque de diversões, o qual eu só olhei a uma distância segura porque, como eu já devo ter escrito aqui alguma vez, eu morro de medo de montanha russa.

E o Pico do Jaraguá, ah, quem nunca foi lá? Tem antenas, tem algodão doce, tem patos (tem patos? faz muito tempo que não vou). O Pico do Jaraguá é o ponto mais alto da cidade e eu estou enrolando aqui pra arrumar coisas pra falar sobre ele.

Mas, entre os dois competidores, apenas um deles foi citado num episódio de Friends. E aí fica difícil eleger outro vencedor.

Ponto para Barcelona.


Vendedores ambulantes, parte 1: cerveja

A principal razão de eu ter feito toda essa viagem foi um festival de música que, a exemplo de todos os outros festivais de música do mundo, não tinha o Volto Logo Joyce no seu line up. E, vocês sabem, ao redor de eventos assim sempre há os ambulantes vendendo bebidas a preços menos abusivos que os praticados depois do portão. E lá em Barcelona os caras simplesmente seguram uma latinha na mão (ou aquele six-pack, com um bagulho de plástico unindo todas) e ficam dizendo "beer. beer." SEGURANDO A CERVEJA QUENTE SOB UM SOL DE 18 GRAUS (lá isso é muito).

Em São Paulo as bebidas ficam geladinhas dentro do isopor, e além de cerveja você pode comprar refrigerante e água, muito embora a água possa ser somente o gelo do isopor que derreteu. Evite a água.

Ponto para São Paulo.


Vendedores ambulantes, parte 2: apito

Ao caminhar pelos espaços mais dados ao comércio e ao turismo, como La Rambla e a rua 25 de março, você encontrará, é claro, vendedores de todo tipo de merda que só alguém muito idiota compraria (voltei com uma mala cheia). Um dos produtos em comum é um tipo de apito que você põe entre os dentes e faz barulhos divertidos - e eu só não digo que é um kazoo porque eu não sei se é, mas parece um bocado. Em Barcelona, a batalha pela atenção dos turistas provoca um festival de talentos entre os vendedores, cada um improvisando uma canção diferente e mostrando toda a versatilidade de algo tão pequeno e aparentemente simples, numa bela mensagem de que a criatividade supera todas as limitações.

Em São Paulo, todos - absolutamente todos - os vendedores usam esse apito pra gritar "ai titiiiiaaa".

Ponto para São Paulo (porque família vem acima de tudo).


Gente bonita

Aqui temos um exemplo da seriedade dessa competição. Outra pessoa poderia dizer que as pessoas em Barcelona são obviamente mais bonitas, que parece que você é figurante num seriado de televisão, que se apaixonou por todas as mulheres e que com alguns homens até considerou que a homossexualidade não fosse uma má ideia. OUTRA PESSOA diria isso, OUTRA PESSOA! Mas não eu. E por que?

Porque, amigos, a beleza exterior não importa. É tão frágil quanto uma vaca num furacão, tão perecível quanto uma camiseta nova lavada pela moça que faz limpeza aqui em casa. O que importa são os valores, é a bondade, a lisura, a educação, a honestidade, a amizade. Isso dura pra sempre. Beleza exterior é masturbação, mas beleza interior é amor verdadeiro.

Empate.


Conscientização política e social

Em São Paulo, principalmente desde junho do ano passado, o povo não é tímido ao ir às ruas demonstrar sua insatisfação contra tudo que lhe aflige. Protestam por diminuição na passagem do transporte, por melhor educação, por mais salário para os professores, pela legalização da maconha, contra o racismo, contra a homofobia, contra o machismo, contra desapropriações, contra a corrupção, contra a maldade, contra dores de garganta, contra esses eventos engraçadinhos do Facebook, contra gente que faz uma lista imensa de coisas e dá uma indireta sutil lá no meio porque não é homem pra falar na cara. O paulistano não aceita desaforo, porque é só acontecer algo ruim e nós vamos para a rua pintar nossa cara e tirar selfies e postar com a hashtag #vemprarua.

Em Barcelona, nos nove dias em que estive lá, vi três manifestações: uma alertando o mundo para as coisas horríveis que acontecem na Venezuela, com diversos cartazes mostrando números que denunciam a situação do país; uma com o mote Free Biafra, pedindo a independência da região que fica ao sul da Nigéria e que já foi um estado soberano entre 1967 e 70, mas acabou sendo reincorporada ao restante do país graças à ferramenta diplomática mais poderosa que existe: a porrada (e é óbvio que eu pesquisei tudo isso na wikipedia, na hora achei que fosse o fã clube africano do Dead Kennedys); e uma, essa sim finalmente dos cidadãos catalães, pedindo cadeia para os corruptos e coisa e tal.

Ou seja: enquanto o paulistano tem grande consciência política e não se deixa ser ofendido pelos poderosos, o barcelonês é apenas uma marionete do governo, que compra a submissão de seu povo com suas ruas limpas, seu transporte que funciona, sua educação privilegiada, sua qualidade de vida. Alienados! Vendidos!

Ponto para São Paulo.


Altitude

São Paulo: 760m
Barcelona: zerooooooo

Ponto para São Paulo.


Resultado final

E ao final de nossa competição, São Paulo tem 5 pontos enquanto Barcelona tem apenas 1. Uma senhora lavada, que apenas comprova o que vocês todos provavelmente estavam pensando desde o início do post: as cidades europeias podem até ter estudado nas melhores escolas particulares, mas nunca serão aprovadas no vestibular da vida.

Encerramos aqui nossa transmissão. A seguir, provavelmente muitos textos sobre futebol porque a Copa vem aí. Fique conosco.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Feira das nações

Barcelona me surpreendeu em alguns aspectos, mesmo eu tendo feito uma pesquisa relativamente decente durante os meses que antecederam essa viagem. Uma dessas surpresas, por exemplo, está na beleza da cidade: ela é muito, muito mais bonita do que eu esperava, e olha que minhas expectativas eram altas. É verdade que talvez o meu senso estético possa ser colocado em avaliação aqui, já que eu também acho bonito o centro de São Paulo e o primeiro modelo da Variant, mas vamos em frente.

Outra coisa que eu não esperava, apesar de conhecer o caráter turístico da cidade, é que a incidência de turistas fosse tão alta. E de lugares tão distintos. Por exemplo, tem muito turista em Aparecida do Norte, mas o máximo que você vai ouvir é uns sotaques diferentes e pronto. Aqui tem tanto viajante e eu ouço tantos idiomas diferentes na rua que ainda não sei identificar nem a língua oficial da cidade, o catalão.

Mas com base em certos aspectos como o idioma, a cor da pele e a bandeirinha bordada na mochila, dá pra perceber vários grupos de nacionalidades diferentes, e nisso tirar umas conclusões rasas ou avaliar aquelas imagens que chegam até nós pelas poucas informações que recebemos desses outros povos e culturas.

A língua que eu mais ouço aqui, depois do castelhano, é o inglês. É tão comum que agora eu só converso em inglês, porque a vida fica bem mais fácil. E uma coisa que deu pra notar é que crianças inglesas invariavelmente soam como almofadinhas irritantes paus no cu. Isso pode ser só reflexo de uma juventude inteira assistindo filmes que gozavam desse perfil, mas que parece, parece. A criança pode falar qualquer coisa (tipo "tá gostoso esse sorvete, hum") e eu já quero gritar pro pai "porra, ponha limites nessa criança!".

Outro grupo que tem bastante aqui, e hoje eu vi tantos que pensei ter acordado na cidade errada, são japoneses (e a tal cidade errada é São Paulo mesmo, no bairro da Liberdade). Eles são muitos. Hoje eu vi tantos no museu do Picasso que as únicas razões que pude pensar é que ou o Picasso é um popstar tipo Romero Britto no Japão ou eles confundiram com Pikachu.

Entre as línguas que eu não identifico, os mais populosos são os alemães (e por "alemão" eu considero "todo aquele que tem a cara branca, o cabelo loiro e fala grunhindo"). Não sei o que dizer deles, não me importo. Eu já vi alguns russos, e devo dizer que me desapontaram um pouco, porque nenhum deles fez nada bizarro como estou acostumado a ver nos vídeos. Hoje vi também uma caravana da Noruega, de umas 40 pessoas. Existia uma história (que não sei se é real) que a média de idade da população na Noruega era tão alta e a taxa de natalidade tão baixa que eles passavam propagandas eróticas no horário nobre pra incentivar o coito nas pessoas. Vamo procriar, galera. O que eu posso dizer, na minha limitada experiência, é que o mais novo desses 40 deve ter, chutando baixo, uns mil e duzentos anos. São muito assombrosamente velhos. Acho que se você emendasse eles todos numa sequência na linha do tempo daqui pro passado, um de cada vez, o primeiro estaria flutuando no espaço porque ainda não haveria Terra.

E há os brasileiros. Aparentemente Barcelona é um destino para famílias, porque a configuração padrão que eu encontro é pai + mãe + filha encalhada. Já vi também casais com crianças e um casal em lua de mel - e eu sei disso porque, no livro que fica na saída da exposição que mostrava a tenebrosa época em que o General Franco surrupiou da Catalunha toda sua identidade e a encheu de nazistas e fascistas, eles escreveram "Ana e Luis estiveram aqui em lua de mel <3" e eu fiquei meio contrangido porque não consigo imaginar nada mais inapropriado pra escrever, tirando aquela vez que o Justin Bieber visitou a casa da Anne Frank e escreveu que, se ela vivesse hoje, seria uma belieber. Fora do padrão, encontrei só dois amigos que desciam uma ladeira cantando Hello Goodbye. É verdade que eu tenho vontade de abraçar os brasileiros aqui (e as pessoas que cantam Beatles em qualquer lugar), mas eles eram jovens e homens, então nah.

Ah, e há também os com a camisa do Corinthians, porque pelo visto não há lugar no mundo livre dessa desgraça. Eu disse que Barcelona me surpreendeu, mas não falei que era positivamente.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Suerte

Pode não parecer, pelas coisas que eu escrevo aqui, mas eu sou um cara de muita sorte. Claro que destaco os momentos contrários ou exagero a situação pelo apelo autodepreciativo, mas é fato que tenho mais sorte que a maioria das pessoas, haja visto que mesmo com minha evidente e avassaladora inaptidão em lidar com qualquer desafio que o mundo me apresente ainda não estou vivendo dentro de um esgoto com uma barra de ferro enfiada no estômago que eu não posso tirar ou vou morrer.

Hoje meus planos na capital catalã eram simples: pus o despertador pra tocar às 8, pra eu enrolar até as 8h30, pra sair às 9, pra comprar um chip com internet para o meu celular e então dar início às atividades do dia, que incluíam o Montjuic e o Parc Güell (esse eu tentei ir ontem, mas estava cheio e demoraria muito pra entrar, então empurrei pra hoje. Isso não tem a menor importância), dois espaços abertos. Guarde isso.

Pois o celular despertou às 8, eu pus no soneca, tocou às 8h10, soneca, 8h20, soneca e eu nunca mais soube dele até que acordei, no susto, às 10h41. Puta que pariu, puta que pariu! Levantei correndo, escovei os dentes correndo, troquei de roupa correndo e fui à rua, com as pálpebras ainda coladas pelas remelas e a calça vestida ao contrário (mentira). Chegando na rua, mais más notícias: chuva. Continuo. Descubro que meu tênis direito deve ter um furinho na sola, porque minha meia está molhada. Ótimo. Chego na loja da empresa telefônica, espero uma hora, sou atendido e o sistema cai. No mesmo instante em que o cara me pedia desculpas (na verdade ele não pediu desculpas, o povo aqui é meio - eufemismo - mal educado) o meu intestino me pedia permissão para abrir as comportas. Mais de uma hora depois de eu já estar atrasado duas horas, estou com a meia molhada, sem chip e voltando pro hotel com vontade de cagar. Eu atravessei o oceano, mas a minha sorte perdeu o voo.

Frustrado, fiz o que tinha que fazer (cocô) e voltei à rua. Vou mesmo assim, mesmo com meia molhada, mesmo com chuva na cabeça nos lugares abertos (embora vendessem guarda-chuva na saída do metrô, certas coisas são universais). Então o tempo, assim como a minha sorte, começou a mudar. Rodei meia cidade e, quando cheguei ao Montjuic, o céu já estava limpo e lindo. Quando peguei o teleférico para ir até o castelo no topo do monte, havia sol, céu azul e até calor. O castelo estava vazio e sem filas, excelente. A temperatura era boa, as gaivotas faziam "craaa" (ou o que quer que façam as gaivotas, ou o que quer que sejam aqueles bichos) e os gringos faziam "nhenhenhem" com suas caras rosas estúpidas. Agora vamos à avaliação lógica da coisa toda:

Eu tenho sorte pra caralho. Não porque o tempo mudou e ficou bom, porque isso não significaria sorte, significaria apenas um certo equilíbrio, já que eu me ferrei de manhã e a ferrada foi desativada à tarde. Acompanhe comigo: se eu tivesse acordado no horário certo, teria feito todo o passeio com chuva na cabeça e ainda provavelmente teria ficado com vontade de cagar quando estivesse bem no topo da montanha ou, pior, no ônibus, ou, pior, no teleférico. E ainda teria tuitado isso com meu super 3G no celular. Porém, ao cancelar essas duas horas de chuva com meu sono inconveniente, eu me livrei da chuva, cheguei ao topo da montanha junto com o sol e, como saí pouco antes da chuva acabar, também cheguei antes de todo mundo. Ou seja, minha sorte não anulou os efeitos indesejados dos acontecimentos da manhã, ela transformou-os em vantagens. E, mais pro final do dia, andando aleatoriamente pelas vielas de um bairro qualquer, ainda encontrei diversas coisas que estava procurando e não sabia onde achar (como diabo se diz "isopor" em espanhol?) e comprei o chip, finalmente, seco e sortudo. Ah, e vale comentar que na volta do castelo eu fiquei trancado no teleférico com três inglesas que estavam loucas de desejo e fizemos um montão de sexo.

Vai que cola.

domingo, 25 de maio de 2014

Sobre saudades do português (não o Manoel)

Eu saí de solos paulistas às 18 horas da sexta-feira, com os sonhos pulsando e o nariz escorrendo. Duas horas depois cheguei a Salvador com o nariz ainda escorrendo, mas consegui comprar lenços de papel, pelo menos (ê). Na área de embarque a maioria era gringa e o castelhano povoava o ar da Bahia. Ao entrar no avião e avistar a comissária de bordo saudando a todos na porta, pensei que seria minha primeira troca de palavras no idioma dos colonizadores de nosso continente. Eu diria um "buenas noches", ela diria outro "buenas noches" e bacana, bom começo. Então eu cheguei, mostrei minha passagem e ela falou mais ou menos 10 mil palavras em 7 segundos e aquilo foi um choque de realidade tão grotesco que as próximas palavras dela, essas eu entendi, foram "señor, ¿por qué lloras?"*

Sentei na minha poltrona e ao meu lado sentou um espanhol, com sua cara boba e seus dentes tortos  - aliás, inacreditável a qualidade dentária nesse continente. Dá a impressão de que dentista é uma daquelas profissões que só tem em alguns lugares, como limpador de neve ou jogador de futebol americano. Perdi a linha. Enfim, o espanhol sentou do meu lado. Liguei minha telinha e pus o fone de ouvido, e descobri que tava quebrada aquela merda. Paciência, não vamos fazer o classe-média-sofre agora. Aí olhei pro lado e o gringo tava assistindo O Hobbit 2 dublado em espanhol. Ver um filme ruim dublado quando a pessoa ao seu lado não tem nada só pode ser considerado ostentação.

Voei, dormi, acordei (e fiz a burrada de despachar minha escova de dentes com a bagagem maior, então imagina o meu bafo), chegamos a Madri, eba. Aeroporto estranho, gente esquisita e duas coisas me marcaram: como estava cheio de gente com uniforme do Real Madrid ou do Atlético esperando o voo pra Lisboa (a final da liga dos campeões seria realizada naquele dia em Lisboa entre os dois times da capital espanhola, caso você não seja desses ligados nas coisas que importam na vida) e como, agora, havia muitos idiomas mais no ar, mais uma coisa pra aumentar a apreensão do cara com mau hálito que parece terrorista. Nesse momento, senhores, eu confesso: senti saudade de casa pela primeira vez, 12 horas depois de tê-la deixado pra trás. Não de casa no sentido de "minha cama, minha bagunça", mas senti falta da minha terra natal, daquela gente com dentes certos, do meu idioma, puta que pariu. Houve uma hora que passou um grupo de quatro brasileiros, entre os 50 e os 70 anos, e eu fiquei seguindo eles só pra ouvir o doce som de um "nóis chega" ou um "preciso mijá".

O próximo voo, que seria o último, atrasou três horas. Fiquei chateado, fiquei impaciente, estava triste de saudade. Fui no banheiro, larguei um barro e não dei descarga*, pra deixar meu protesto contra esse lugar. Quando finalmente estava embarcando, todo mundo putão, um cara da companhia aérea explicou que aquele avião atrasou porque vinha de São Paulo e alguma coisa aconteceu. Lembro que tive dois pensamentos, sendo o primeiro "aff que conversinha um atraso é um atraso como pode uma coisa dessas" e o segundo "peraê, TINHA UM VOO DIRETO DE SÃO PAULO?!". Infelizmente não pude manifestar essa indignação verbalmente, dado meu limitado conhecimento do idioma, mas sorte que já tinha feito o protesto escatológico horas antes, caso isso fosse verdade.

Cheguei em Barcelona, enfim, e a cidade é bonita que só a desgrama. Todos falam comigo fazendo muitas mímicas, como se eu fosse um retardado (o cara do hotel estava me ensinando a usar a chave, sério), algumas pessoas perguntam se eu prefiro que elas falem inglês ou espanhol (e eu faço cara de "whatever", mas eu não falo "whatever" porque meu cérebro tá chaveado no espanhol e eu não sei falar "whatever" em espanhol - uma hora eu disse "tanto faz", mas a moça não entendeu), e eu só quero que elas falem português. Por esse motivo, em todas as atrações que visitei até agora que dispunham da opção, peguei o áudio-guia. Assim posso sempre me sentir em casa, mesmo que seja aprendendo sobre os pórticos da Sagrada Família com um portuga falando no meu ouvido.

Vale dizer que eu peguei um desses ônibus turísticos que dispõem de um guia em áudio e, nos momentos sem fala, toca uma música incidental que por vezes lembra coisas do Massive Attack. Então, com todo respeito, o Gaudí que se lasque, a coisa mais genial em Barcelona é o trip hop com o português contando a história da construção da cidade. Tem que ouvir isso, gente*.

* Mentira total ou parcial

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Te vi na TV

Eu estudei no prédio da TV Gazeta, estudei e trabalhei na Avenida Paulista e no centro de São Paulo. Assim sendo, é bastante aceitável supor que eu já apareci na TV como uma dessas pessoas que passam no fundo enquanto entrevistam alguém na rua - e tem também o show do Johnny Marr nesse último Lollapalooza, em que eu fiquei lançando olhares ameaçadores pra câmera toda vez que ela passava na minha frente, e isso talvez tenha ido ao ar, vai saber.

Mas a primeira vez em que eu fui a pessoa principal na frente da câmera foi, acredito, em 2004. Eu me lembro de uma parte e vou supor o resto, então acho que foi isso: eu e um amigo da faculdade estávamos no parque do Ibirapuera tirando fotos para algum trabalho de fotografia. Uma repórter, acho que da Record, nos abordou e perguntou se alguém queria responder uma pergunta. Eu ia dizer "não", mas meu amigo disse "sim" e eu só fiquei ali esperando. A pergunta era sobre uma greve de sexo da mulher do Schwarzenegger, à época governador da Califórnia. Acho que ela quis protestar sobre alguma coisa e disse que não ia transar com ele por algum período de tempo, e lembro que era um período bastante curto pra ser considerado protesto - tipo uma semana - e a pergunta era como a gente se sentiria se fosse o governator. Meu amigo deu uma resposta ponderada e correta, e beleza. Aí a câmera virou pra mim e a mulher perguntou "e você?". Eu achei que a entrevista era só com ele, fui pego de calças curtas e fiz alguma gracinha (claro) sobre como oh meu deus uma semana sem sexo quem aguenta isso. Como se os telespectadores não pudessem notar pela minha aparência que eu não era exatamente o comedor que minha resposta tentava transparecer.

Eu nem sei se isso foi ao ar, mas, pra todos os efeitos, perdi a primeira vez em que apareci na TV. O que é uma pena, porque deve ser legal, como na vez que meu primo apareceu na novela das 9 e eu não fazia ideia e de repente tava a cara dele gigante na tela e eu saí correndo pela sala gritando "meu deus meu deus por que eu estou assistindo a novela".

Mas haverá uma segunda vez para eu me envergonhar em rede nacional e, coisas do destino, eu não vou ver também. Basicamente é isso: tem a banda que eu estrago, e a gente vai se apresentar num programa que eu nunca ouvi falar de uma emissora que eu tive que procurar no Google pra saber se existe mesmo (existe). A gravação dar-se-á em alguns dias, e não sei exatamente quando vai ao ar, mas é provável que seja no meu período além-mar - e, de qualquer forma, não tem essa emissora na Net. Claro que dessa vez a vergonha vai ser maior porque 1) eu vou aparecer cantando - e eu canto mal, 2) eu vou aparecer tocando - e eu toco mal, e 3) minhas letras vão terminar de contradizer minha entrevista de 10 anos atrás. Ou seja: absolutamente imperdível.

Sorte da vida (e azar o meu) que hoje existe Youtube e provavelmente teremos tal evento nos servidores do Google para os meus bisnetos verem e pedirem a mudança do sobrenome. Isso se, depois dessa, eu ainda vier a ser pai. Mas vocês fiquem tranquilos: pra quem já foi na pediatra aos 25 anos só pra poder ter assunto pro blog (e porque minha mãe mandou), certamente meus vídeo-constrangimentos não passarão impunes nesse espaço virtual. A menos que eu toque tudo direitinho, mas sejamos realistas.

terça-feira, 29 de abril de 2014

As aventuras do Detetive Padulão em Ladeirópolis

Sempre que preciso ir a algum lugar pela primeira vez eu faço um planejamento razoável: vejo como chegar, quais os caminhos alternativos, quanto tempo eu levo. E faço isso porque, como vocês sabem (ou não), eu não tenho carro e as coisas são um pouco mais complicadas nessa situação, mas nada que uma pesquisazinha esperta no site da SPTrans ou da EMTU não resolva.

Mas eu também sempre deixo um espacinho para a aventura. Sacomé, se acontecer alguma coisa e o plano for por água abaixo, deixar uma lacuna de planejamento aberta para o acaso, porque é divertido e tal.

No último domingo eu fui ao casamento de um amigo em outra cidade, e, visto que nenhum dos meus outros conhecidos compareceria, resolvi ir na raça mesmo, gravata no pescoço e gibizinho no bolso, em um sacolejante ônibus até um lugarejo próximo ao local do evento. A ideia era descer lá e pegar um táxi, mas eis que eu chego e não há táxi. Decido, então, ir a pé. É hora de aventura.


Pouso meus sapatos gastos sobre o asfalto quente de Ladeirópolis. O ônibus parte. Pessoas, casas eternamente em construção, subidas e descidas. Afrouxo a gravata e sigo ladeira acima pisando em minha sombra pequena. Uma garota, atraente de uma maneira nenhuma, se aproxima, estende a mão e diz "aceita um jornal?". Aceito. "É às sete e meia na Universal". Não compreendo o universo, não me interesso. Olho o jornal. Na capa, uma mulher bonita ao lado do título: "Dormindo com um desconhecido". Prevejo algo mórbido. A chamada diz: "a modelo Reeva Steenkamp foi morta na noite em que dormia com o namorado que conhecia há menos de 3 meses. Por que as pessoas ignoram os perigos de se entregar a quem não conhecem?". Um assassinato. Um caso a resolver. E uma lição: ao cometer um crime, entregue-se a um policial de confiança. Reeva cometeu o crime de dormir com o namorado após três meses e se arrependeu. Foi cruelmente morta. O culpado me parece claro: um policial. Nunca confiei neles, sempre resolvi meus crimes sozinho. Não acredito nas grandes corporações. Elas mentem e cobrem seus rastros. Onde está Reeva? Há algo que não querem que saibamos. Mas há pessoas que ignoram os perigos, como esse grupo "Universal". A garota que me entregou o jornal possuía um piercing azul entre os dentes, claramente um objeto de identificação do grupo. Ninguém usaria algo tão horroroso sem um motivo.

Ladeirópolis se estende ora sobre a minha cabeça, ora abaixo dos meus pés. As pessoas ao redor bebem, conversam e brincam. Algumas me olham torto. Talvez desconfiem de quem eu sou. É preciso tomar cuidado. O sol me banha. Afrouxo um pouco mais a gravata. Subo as ladeiras em direção ao casamento. Pessoas irão se casar, será um lindo dia. Mas não para Reeva. Ela não esperou até o casamento para dormir com o namorado e pagou o preço por isso. Sigo entre olhares desconfiados completamente desarmado, munido apenas de um celular com 3g e o telefone da minha mãe na discagem rápida. 3g da Tim. Cena da mulher virando para trás e vendo o homem com a faca em Psicose. Ele me aponta o caminho. Primeira à esquerda, no final à direita, novamente à esquerda. Chego e não há mais estrada, apenas um pequeno morro. Grama alta nas laterais, e no meio, uso meus talentos de detetive para descobrir, deve haver terra embaixo de toda a bosta de cavalo. Chop, chop, chop, faz meu sapato enquanto luto para subir. Meu velho engraxou esses sapatos, ele não poderia ver essa cena. É muito emotivo. Eu não. Não posso ser. Não nessa profissão.

À minha esquerda, uma cerca de arame farpado. O barulho das pessoas e dos golpes de martelo cessa. Ouço apenas o ruído da minha respiração pesada e da eletricidade nos fios de alta tensão. Eletricidade. Impulsos elétricos, neurônios. Pense, Detetive Padulão, pense. Vejo uma árvore, destacando-se sozinha no cume do morro. Uma árvore sinistra. Penso em Reeva. Meus instintos me apontam que ali está o corpo. Eletricidade.

Chego próximo à árvore, mas não há corpo. Quem fez isso pensou em tudo. Há, entretanto, um rato morto. Uma mensagem. Sabiam que eu viria até aqui. Continuo, agora para a descida. Os sapatos lutam com o terreno escorregadio. Volto ao asfalto, caminho mais um pouco, chego ao local do evento.

Pessoas bonitas, bem vestidas, felizes. Estou suando, desarrumado e com leves sugestões cranianas de que, se eu tivesse cabelos, estariam desgrenhados. Vou ao banheiro e me refresco. É preciso deixar isso para trás. Devo compartilhar da felicidade de meu amigo. Bruno Rocha. B. Rocha. Pílulas azuis. Imagens e palavras aparecem e se desconstroem em minha cabeça aleatoriamente. Pessoas por todo lado. Me cumprimentam. Me oferecem carona para a volta. Recuso, digo que vou voltar de táxi. Mentira, ainda preciso resolver um caso, mas não vou atormentar essa gente boa com coisas terríveis. Eles não merecem.

Começa o casamento. Dia bonito. Noivos felizes. Aquele meu amigo chora copiosamente. Termina o casamento. Todos felizes. Penso em Reeva. O amor que constrói também pode matar. Não foi o caso dela, mas foi algo que me ocorreu. Talvez um título para meu próximo conto policial. Meus contos são sempre mais suaves que a realidade. A realidade é dura demais para entreter alguém. Me despeço das pessoas, finjo que vou pegar um táxi, subo a pé. O silêncio é opressor. Eles sabem que estou aqui e se escondem. Subo o morro e nada. Desço as ladeiras e nada. Me derrotaram. Estou devendo essa para Reeva. Olho para o jornal novamente. Linda mulher. Guardo o jornal para mais tarde, quando estiver em casa. Sento no ponto, espero o ônibus chegar. Grupos de jovens passam para lá e para cá. Um deles puxa um carrinho com uma caixa de som, como um jumento puxando uma carroça. A caixa de som canta que "ele é demais, ele é o senhor". Espero e espero. Pessoas sentam-se a meu lado no banco. O telefone toca. Atendo. "Filhão!", diz a voz do outro lado. Certamente é um impostor, ninguém me chama dessa maneira, não eu que sou um detetive tão respeitável. Ouço as instruções. Cinquenta minutos, posto de gasolina, avenida do Estado. Combinado. Chega o ônibus. Devo entrar? Devo esperar uma ordem? As pessoas não se levantam e não entram porque não devem entrar ou porque me esperam, por eu ser o primeiro da fila? Sendo o primeiro da fila, sou eu que devo tomar uma atitude? Mais um mistério. Minha cabeça dói. O motorista liga o motor. É a minha deixa. Vou até a porta, piso no primeiro degrau. O motorista reclama. O cobrador ainda não entrou. Perdi mais uma. Hoje é um péssimo dia.

O ônibus parte. O impostor me encontra no posto, me leva para a casa dos meus pais, ou daquelas pessoas se passando por meus pais. Há uma festa de criança, da pequena Graziela. Apenas oito anos. Ainda não sabe da crueldade do mundo. Eu sei. Reeva sabe. O policial que a matou sabe. E sorri. Pego uma bala de coco e parto. É hora de ir para casa e relaxar após um dia difícil. Levo o jornal comigo para, ahn, consulta. Minha silhueta se distancia. Mordo a bala de coco. Quase quebra minha obturação. Bagulho duro.

sábado, 26 de abril de 2014

Crônica de uma vida entediada

Quando, no ano passado, eu estabeleci essa meta de postar quatro vezes por mês, achei que seria impossível. Em anos recentes, se eu conseguisse postar duas vezes num mês já era uma vitória. Mas daí que deu certo, eu comecei a vasculhar histórias pra contar, observar melhor as coisas, mexer com o formato estabelecido dos textos aqui. Mas eis que, apesar de tudo, a base disso tudo são as coisas que me acontecem na vida, e publicar os tais quatro posts por mês ficou bem complicado quando a minha vida anda tão parada que se fosse água seria um perigo para a infestação do mosquito da dengue.

Então, no melhor esquema "querido diário", vou fazer um resumo geral das coisas que se passaram nas últimas semanas, na esperança de que juntando tudo isso dê um post:

A parte do trabalho: essa é assim: eu acordo, escovo os dentes, troco de roupa, passo o desodorante, calço meus tênis e vou. Vinte minutos depois eu ponho meu dedinho no marcador de ponto, e de acordo com a hora que eu cheguei faço o cálculo de que hora vou precisar sair, dentro de um plano maior de acumular infelicidade pra poder fazer aquela viagem mês que vem. Aí na hora de ir embora eu pego minha mochila e meu guarda-chuva enorme e caminho até a minha casa.

A parte da casa: eu chego em casa, faço cocô, limpo o bumbum, lavo as mãos, deito na cama e fico lá até meu corpo e o colchão tornarem-se uma unidade indivisível. Aí eu divido-as, porque preciso tomar banho, e aí eu durmo.

A parte da diversão: essa parte está em falta, desculpe o transtorno.

A parte em que eu tento me desapegar do futebol: PORRA DOUGLAS ACERTA UM PASSE CARALHO

A parte da banda: a gente ensaia uma vez por semana, as mesmas músicas, mas cada vez eu erro uma coisa diferente. Pra dar mais dinâmica.

A parte do entretenimento digital: eu larguei o Bravely Default porque a segunda metade dele é uma canalhice tão grande que eu desejei que todas as pessoas envolvidas no jogo tenham diarreia perpétua. Eu fico vendo documentários sobre música na Netflix. Temporada nova de Mad Men. A temporada que acabou de Community. Xvideos. Digo, cinema, ótimos filmes em cartaz, como aquele do... ahn... ah, eu assisti Cidade de Deus outro dia pela primeira vez. É bom, né? O que me lembra...

A parte da diversão (errata): fui à festa de 50 anos de um certo conhecido escritor/quadrinista brasileiro e lá estava o escritor de Cidade de Deus. Eu fiquei olhando ele de longe, foi irado.

A parte da viagem: estou tão preparado hoje quanto estava quando escrevi aquele texto. Ou seja, vai mal a coisa.

A parte da rinite: lembra que ela tinha ido? Voltou. Não do jeito que eu previa, mas mesmo assim não veio pra brincadeira. Tô adorando.

A parte boa: Magikitos, o pior salgadinho do mundo, o indigerível, nascido no isopor, aquele que você precisa virar a cabeça pra trás quando abre, o que era bem difícil de achar, desapareceu do mapa de vez com a falência da cadeia de supermercados Econ (descanse em paz). Fui um dia ao Extra procurar o presente do supracitado conhecido escritor/quadrinista e aproveitei para buscar Magikitos em suas prateleiras, na vaga esperança de que houvesse um milagre me esperando. Nada. Naquele momento, eu ouvia Bobby Jean do Bruce Springsteen, uma música em que ele conta a história desse grande amigo, de como eles passaram por tantas coisas juntos, e que agora ele queria vê-lo de novo apenas para se despedir. E eu pensei "sim, eu queria ver o Magikitos mais uma vez, só pra dizer que eu sinto sua falta, baby, boa sorte, adeus, Magikitos".

Como também não achei o tal presente, procurei no dia seguinte em outros mercados, até que cheguei ao Pastorinho da Vila Mariana, facilmente o pior mercado num raio de seis continentes. Não havia o presente (a menos que eu estivesse disposto a dar um Drurys, que não é exatamente um presente, é um desafio a um duelo) e, enquanto andava frustrado pelos corredores cheios de produtos de qualidade duvidosa, encontrei, ali, sim, ali, ele: Magikitos. Prateleiras cheias dele! Meus olhos se encheram de água, meu coração se encheu de alegria, minha alma se encheu de esperança: há sim, milagres nesse mundo. Há sim, um fim do arco-íris.

E custa 2,31.


segunda-feira, 14 de abril de 2014

Homem não chora

É sabido, cá entre os habitantes desse planeta, que homem não chora. Ou que não deve chorar, pra ser mais preciso. É uma imposição de conduta, como tantas outras com as quais a gente se habituou a viver, e baseia-se na ideia de que não é produtivo nem abonador para um humano do sexo masculino demonstrar emoções, pois todo homem deve ser um deserto sentimental, uma muralha psicológica e uma máquina no cumprimento de suas funções de macho, porque, sabemos, é bem difícil caçar antílopes com os olhos cheios d'água.

Mulheres choram. Mulheres tem lá seus hormônios, tem lá seus sentimentos, mulheres são frageizinhas, ui, que florzinha. E homens não podem ser como mulheres, porque precisam ser melhores pra manter de pé toda essa estrutura paternalista que precisa existir, porque vai que desaba isso e o mundo vira um lugar melhor. Nem pensar. Então desenhamos nossa complexa arquitetura das atribuições de cada gênero na mecânica da sociedade, em que o homenzinho (representado pela cor azul) não chora e a mulherzinha (representada pela cor rosa) chora um bocado, enquanto lava nossas roupas e põe nossas cervejas no congelador.

Só que o mundo não é assim tão simples e as convenções mudam ou se desencaixam com o estado corrente das coisas, então há os homens que choram, seguros de seu mapa emocional, despreocupados com o tribunal social. Bom pra eles. Mas, ainda que amolecidos os padrões, se você é um homem e tem essa mania besta de fazer escorrer água pelos olhos, precisa dessa confiança no seu próprio taco.

E o que fazer quando você não é lá muito seguro mas chora feito um pano molhado sendo torcido? Eu tenho um amigo (não vou citar nomes, ele prefiro ficar anônimo) que chora mais do que é recomendado não só para um homem, mas também para uma mulher, para uma criança e para um cavaco numa feijoada no sabadão. E não é que ele chore porque é triste e o mundo é cruel, é quase um protocolo de reação solitário. Ficou confuso, mas vou explicar melhor.

Esse meu amigo tem essa mania boba, coisa de quem levou surra de menos e assistiu Chaves de mais, de responder tudo com piadinha, com comentariozinho sem graça. É como um tenista que, mal preparado nas categorias de base, só devolve a bola de um jeito. Mas e quando não é exatamente tênis, pois não há uma contraparte? Quando tem uma máquina cuspindo bolas do lado de lá, mas não tem pra quem ele rebater? Ele chora.

Tá vendo um filme, e o filme é triste: chora. O filme é feliz: chora. O filme é uma merda: chora. Não acontece nada no filme: chora. Vê um episódio de uma série, alguém consegue um objetivo: chora. Alguém não consegue: chora. Alguém se apaixona: chora. Alguém é eleito presidente das Doze Colônias: chora. Ouve uma música triste: chora. Ouve uma música bonita: chora. Ouve uma música ruim: troca de música, também não é assim.

E ele só chora quando está sozinho em um espaço fechado e sem risco de ser flagrado. Não porque em público ele saiba se controlar; na verdade, é justamente por isso que toda fruição de entretenimento ele faça sozinho. No cinema ele vai pouco, mas tá escuro e dá pra disfarçar. Em shows ele dá umas escorregadas também e eventualmente canta "you're asking me will my love gro-o-o-ow" entre soluços, mas também dá pra esconder um pouco. De resto, sua persona pública mantém os olhos secos, o coração duro e as emoções trancadas, porque ele tem uma reputação a zelar e não vai pegar bem se as pessoas começarem a achar que ele é mole desse jeito. Não, esse meu amigo é machão, carrega a bandeira da tradição masculina de outrora, do tempo que homem não chorava, não amava e não depilava o peito. Deu a impressão que esse lugar reservado onde meu amigo chora é dentro de um armário, mas também não é por aí.

 O caso é que nem o mundo está muito preparado para um banana sujeito sensível desses nem esse pamonha sujeito está muito preparado para esse mundo. Mas esse meu amigo se permite sonhar, sonhar com um dia em que ele possa chorar na rua sem ser recriminado, com um dia em que ele não precise usar sua rinite pra disfarçar os olhos molhados. Com um dia em que ele possa escrever na primeira pessoa.

Ou ele pode parar de ser otário, mas tá mais fácil o mundo mudar primeiro.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Eu estive no Lollapalooza esse ano e

Primeiramente, bom dizer que eu só fui num dos dias, o dia legal, aquele que não tinha o Muse (todo dia que não tem o Muse é legal, hoje mesmo eu não ouvi nenhuma vez, foi um ótimo dia). Eu estou meio velho pra esse negócio de festivais (mas ainda não velho o bastante pra aprender), e como a edição desse ano aconteceu no autódromo de Interlagos, também conhecido como puta que pariu que lugar longe dos infernos, foi possível ver as marcas dos pneus da vida manchando meu corpo atropelado e cansado.

Eita.

Pra começar que eu já cheguei lá morrendo. Meio dia, puta solão, supostamente 6 minutos de caminhada entre a estação de trem e o portão de acesso (levei 20, quase voltei pra casa na metade). Assisti pela primeira vez o show do Apanhador Só e foi bem bom, grande banda, boas canções, planeja demais, calcula demais, e nada demais. Pra terem uma ideia, até dei uma grana no Catarse pra bancar o último álbum deles, mas vocês não vão encontrar meu nome nos agradecimentos. Só o de um tal de Thiago Padilha, minha nêmesis. Tem uma música deles cujo refrão tem a frase "decido respeitar a minha dor", o que não tem nenhuma importância para esse parágrafo mas vocês precisam guardar porque eu vou usar em uma piada daqui a pouco.

Ao fim do show, fui caminhar até o palco mais próximo e descobri que, novamente, ou essas medidas de distância e tempo estão equivocadas ou alguém me colocou no slow motion, porque a suposta distância de 300 metros entre eles eu levei 15 minutos pra percorrer e fiquei fora do tempo de qualificação (o que não tem problema porque minha equipe é apenas um esquema de lavagem de dinheiro). Aliás, tudo subida e descida naquele raio de lugar, você vê a corrida pela TV e parece tudo tão plano. Mas, enfim, cheguei no palco seguinte, onde iria rolar o show do Raimundos, mas estava tão cansado e tão suando e tão fedendo e aquele sol de pelamordedeus que decidi respeitar a minha dor (obrigado pela paciência) e fui me encostar nuns dois palmos de sombra, quase sentando em cima de um belo monte de bosta que, honestamente, não quero nem saber como foi parar ali.

Mesmo assim deu tempo de descansar e ver o Raimundos e, talvez por não ser exatamente a minha banda de Brasília da primeira metade dos anos 90 com letras engraçadinhas favorita, não achei de todo mau. Teve Puteiro em João Pessoa, teve Esporrei na Manivela, teve, é claro, Eu Quero Ver o Oco. Não foi ótimo, mas também não foi terrível.

Andei mais um bocado (gente, sério, que tipo de monstro projetou essa distância entre os palcos?) pra ver o Johnny Marr, e embora os Smiths não sejam exatamente minha banda de Manchester dos anos 80 com vocalista vegetariano favorita, foi uma beleza de show. As pessoas estavam empolgadas, o som estava bom, e é bacana ver um ótimo guitarrista tocando ao vivo. Aí teve esse diálogo estranho entre dois caras do meu lado, em que um deles, pra puxar conversa, diz pro outro que viu o show do Morrissey, no que seu companheiro responde "O MORRISSEY É UM DROGADO SAFADO!" e se volta para o palco, continuando sua dancinha. Oxe.

Aí segue o jogo, muito calor, muita gente, Pepsi (oh, deus), aquela banda sem graça com nome de vampiro e vamos ver o Pixies, porque agora sim uma banda de verdade, uma instituição do rock 'n' roll, essa sim exatamente a minha banda norte-americana surgida nos anos 80 com álbum produzido pelo Steve Albini sem contar o Nirvana favorita! Ah, Frank Black, derrama sobre mim esses hits maravilhosos, Debaser, Wave of Mutilation, Gigantic, Velouria!

"Nop", disse Charles. "Não vou tocar nada disso. E Gigantic, sério? A mulher nem tá na banda mais. Mas olha só essas músicas novas aqui ó". Eu não gosto dessas músicas, senhor Black. "Foda-se. E quer saber? Vou pegar então o violão e tocar o resto do show com ele, como se eu fosse o Jack Johnson. Me processa".

Poxa :(

Chateado com essa apresentação - apesar de aparentemente eu ter sido o único no mundo a achá-la um porre - pulei o Soundgarden (obrigado pelos palcos tão distantes, gente, valeu mesmo) e permaneci lá pra guardar meu lugarzinho pro Arcade Fire. "Por que não o New Order?", pergunta o leitor ligado no encavalamento de horários do festival. Ora, porque não. Eu gosto do New Order, mas obviamente nesse festival bizarro isso não significa muita coisa. Então esperei o Arcade Fire e um monstro horroroso feito de espelhos parou do meu lado e ficou dublando na frente do microfone e apresentou a banda e eles entraram e eles tocaram esse disco novo chato mas também tocaram aquelas mais velhas tipo Rebellion e Power Out e The Suburbs e No Cars Go e, pra derreter os nossos corações na chapa, Wake Up. Que grande show, que lindo show, puta merda.

Fui embora caminhando sozinho entre milhares de corações quentinhos até o trem e do trem pro metrô e do metrô pra casa, feliz da vida com esse show do Arcade Fire, e mais feliz de saber que os reencontrarei mês que vem. Meu corpo dói todo, minha pele tá toda vermelha e queimada, mas valeu, foi bom.

E melhor ainda porque não teve o Muse.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Essa história

Acordou lá pelas 8, o que era bem tarde (não que ele tivesse algo pra fazer). Abriu a porta, olhou a paisagem se achatando quilômetros abaixo dos seus pés. Era bom estar tão alto. Foi até o esqueleto da baleia, se apoiou numa vértebra e tirou mais um cochilinho. A história de como essa baleia foi parar no topo de uma montanha isolada de quatro mil metros de altitude é muito boa, mas essa história não é sobre isso.

Acabou cochilando mais do que os 15 minutos planejados, até que a sombra do osso saiu de cima dele e entre seu rosto e o sol não havia mais nada visível a olho nu. Acordou assustado, puxou ar bem forte, mas o ar não vem tão fácil quando se está tão alto. Ele ainda não tinha se acostumado. Voltou pra dentro de casa, acendeu o fogo e deixou a água fervendo. Já não chovia tinha algum tempo, e descer pra buscar mais água envolve uma expedição de alguns dias e sério risco de morte, de modo que ele tentava postergar isso o máximo que pudesse, principalmente depois da última vez. Mas deixa a última vez pra lá, vamos nos ater a essa história.

Sentado na mesa, segurou a foto dela e ficou olhando enquanto tomava café. Era a mesma coisa todo dia. A foto já estava desgastada, os cantos rasgados, um buraquinho de cigarro na parte de baixo. Mas ela continuava linda. Suspirou e se arrependeu, como todo dia, como toda hora desde que chegou ao cume daquela montanha. Mas não dá pra voltar no tempo, e ela não estava mais lá. Continuava se lembrando daquele último momento, de como ele deveria ter esticado o braço para ela ao invés de se segurar na árvore. Mas isso é o passado, e não é do passado que essa história se trata.

Essa história é uma merda.

sábado, 22 de março de 2014

Ao contrário do Bruno de Luca, eu não tenho um programa de viagem

Dois meses atrás, num acesso de coragem e desapego pelo dinheiro e pelas obrigações, comprei ingressos para três dias de um festival em Barcelona no fim de maio. Comprei os ingressos, comprei as passagens, reservei o hotel e molhei o carpete do escritório com minhas lágrimas num emocionante pedido de uma semaninha de folga para o meu chefe (que gentilmente liberou, o que me deixa em débito com eles e pode se voltar contra mim, quando por exemplo me pedirem um dia pra fazer as minhas tarefas ao invés de ficar vendo os posts antigos do AjudaLuciano). Estou com tudo pronto, então, para molhar meus pezinhos no Mar Mediterrâneo uma quinzena antes de começar a Copa - ou seja, dá tempo de vir pintar as calçadas de verde e amarelo, o que eu não perderia por nada.

...Só que, né, também não estou tão pronto assim. Depois desse pulsar de determinação e foco nos objetivos, eu voltei a ser eu mesmo e não fiz mais nada. Não comprei euros, não aprendi espanhol nem catalão (apesar de que esse se parece com português dito por alguém com a boca anestesiada), não planejei meus passeios pela cidade, nem liguei ainda na Decolar.com pra perguntar qual foi a mudança no horário do meu voo que eles anunciaram um tempão atrás. Pior, nesse meio tempo ainda inventaram uma iminente guerra no leste europeu e um avião desapareceu sob a suspeita de sequestro terrorista, o que não é um fato que favoreça minha pele marrom, minha barba negra e minhas profundas olheiras. Além disso, pra passar uma semana lá eu precisarei deixar meu coração em São Paulo. Não que eu vá sentir falta desse inferno, é que o Jesus and Mary Chain toca de graça aqui bem no fim de semana em que eu aterrisso lá. E vai que eu fico tão tocado com essa partida que resolvo desembarcar lá cantando "I wanna die just like Jesus Christ", isso não há de me ajudar muito.

Mas, mesmo assim, estou empolgado. E há de ser uma boa experiência para esse blog, ser escrito em outro hemisfério, outro continente, ¡otro idiuema! (preciso treinar um pouco ainda). E, se não quiserem me deixar entrar por acharem que eu sou terrorista, que essa próxima frase seja um atestado da minha inocência: senhores agentes da imigração espanhola, saibam que tenho tanto medo de bombas que só explodiria uma se não tivesse que viver pra ver o resultado depois.

Acho que agora eu tô garantido.

Dodói

Se tem uma coisa que eu gosto a meu respeito (disse "se", não é certeza que eu goste de algo) é que, apesar do meu físico frágil, do meu psicológico tênue e do meu histórico de patologias na infância, hoje em dia é bem difícil eu ficar doente, sabe-se lá por que milagre. E considerando também a minha alimentação (nenhuma) e atividades físicas (nenhuma), posso dizer que sou, eu mesmo, uma afronta à indústria farmacêutica.

Explico: não é que eu e a dona indústria tenhamos grandes conflitos não resolvidos (na verdade, tenho que agradecê-la pela ridícula melhora da minha rinite), é só que, na medida do possível, eu me recuso a tomar remédio. Hoje, e desde alguns dias, estou com uma leve gripinha, nada muito grave. E não, não tomarei remédio por causa disso. Poxa merda, pra que eu vou ficar mimando meu sistema imunológico com presentes e Attack +10 se isso certamente vai criar pra mim lá na frente um grande problema? Na hora que a coisa apertar, se não houver remédio, se o remédio não der conta, como eu espero que meus soldados vão enfrentar o perigo sem o auxílio do dopping? De que adianta ter uma equipe de Lance Armstrongs se na hora do aperto eles precisam de bicicletas com rodinhas pra correr?

Então não, não tomo. Se puder evitar, tô fora. Assim, meu corpo fica forte (por dentro, por fora eu ainda preciso inventar pra moça do trabalho que eu desloquei o pulso e por isso não posso levar o galão de água da cozinha lá pra sala) e eu só fico doente a cada volta completa de Urano ao redor do Sol.

Isso tem alguma base científica? Não, nenhuma (até porque desde que eu nasci Urano não chegou nem perto de completar a volta). Eu recomendo para as outras pessoas? Não, não venha dizer que a culpa é minha. Mas estou bem, estou vivo, estou quase sempre gozando de perfeita saúde, apesar de contrariar todos os bons conselhos da medicina e da minha mãe (em ordem crescente de sabedoria). Então vocês avaliem aí se esse negócio de ficar engolindo remédio para cada dor no cílio é mesmo uma boa estratégia (mas qualquer que seja a conclusão, não me responsabilizem).

Claro que eu tenho só 29 anos e que muita coisa ainda pode acontecer e que, se todos esses milênios de avanços científicos serviram pra alguma coisa, tudo isso vai cobrar seu preço lá na frente e um belo dia eu estarei andando na rua e de repente meu olho vai cair, meu pé vai virar ao contrário e minha cabeça vai ficar do lado da minha virilha. Mas até lá: chupa Pfizer, chupa Novartis, chupa Aché.

Aí acontece igual no Jardineiro Fiel e eles me matam.

terça-feira, 11 de março de 2014

Professor Futebol

Quem gosta de futebol ou pelo menos acompanha os noticiários sabe que nas últimas semanas apareceram alguns casos de racismo, em jogos na América do Sul e mesmo dentro do Brasil (na Europa tem todo dia, nem é notícia mais). Também começou-se uma discussão tímida sobre homofobia após os gritos da torcida corintiana direcionados aos são paulinos (que não é um tratamento exclusivo dos alvinegros paulistanos, diga-se) e vez ou outra uma árbitra ou auxiliar mulher comete algum erro e o machismo vem abaixo.

Os argumentos que relevam ou defendem os fatos baseiam-se naquela história de que foi sempre assim, futebol é isso mesmo, pra provocar o rival vale tudo e tal. E a provocação é o combustível do jogo, concordo: futebol sem zoeira é igual esporte olímpico. Mas acho que pra um esporte que goza de tanto prestígio, influência, importância e adoração popular, passou da hora de deixar de ser apenas esse microcosmo de isolamento moral onde certas coisas são permitidas desde que dentro daquele contexto. Tá na hora do futebol ser exemplo.

Ora porra, vejamos: muito dinheiro é investido no futebol, seja privado, seja público (no último caso é o seu próprio dinheiro, no primeiro caso é de olho no seu próprio dinheiro). Atletas e parasitas associados ganham muita grana, fama, poder, admiração. São parte essencial do movimento popular cotidiano e alvo da dedicação de todo tipo de gente, esses idiotas apaixonados por um esporte babaca que somos nós. E só o que o futebol dá de volta é "entretenimento"? É só esse cirquinho? Tirando ações filantrópicas de atletas mais abonados (muitas vezes mais pelo evento que pela causa) e aquela velha dinâmica do menino-que-poderia-estar-roubando-mas-se-encontrou-no-esporte, o que diabo o futebol realmente entrega pra sociedade que dá a ele sua alma?

Bosta nenhuma, eu digo. E chega dessa porra. É pouco, é nada. Uma máquina dessa proporção, com braços desse tamanho, tem que fazer muito mais. O potencial do futebol para melhorar a sociedade ao seu redor é imensa. Mas ao invés de cobrarmos dele exemplos, entregamos (ao jogo e a nós mesmos, torcedores circulando o gramado) apenas privilégios, o direito de xingar o outro de macaco, de viado, de vagabunda, o direito de chamar o outro de favelado como se isso fosse ofensa, o direito de sentar o dedo no cara da camisa de outra cor sem precisar responder por isso. O futebol deveria ser um instrumento para explicar pra um mundo cada vez mais atrasado e pra essas crianças que veem os seus Batmans no gramado de meião e chuteira que provocar é uma coisa, tirar sarro é uma coisa, ser intolerante com a condição alheia é outra.

E não é só porque eu tenho horror a esse humor de estereótipo, e também não é que eu seja o torcedor de comportamento ideal (e há exemplos - 1, 2 - no blog), o caso é que o futebol é uma delícia e é ótimo como expurgador de demônios. Só que ao invés desses demônios morrerem, eles vão se aconchegando nos espaços vazios da arquibancada e trazendo o pior de cada um de nós à tona. E, meu amigo, se a sociedade já é feia quando finge ser civilizada, imagina quando se deixa levar. Talvez haja um dever social muito maior aqui do que o próprio jogo, e já é mais que hora de fazê-lo prevalecer, sendo você um torcedor, um jogador, um cartola, um profissional da imprensa.

E se há quem diga que isso deixa o futebol chato, eu rebato: se você acha chato um jogo como esse Corinthians x São Paulo do último domingo só porque não pode expressar seus preconceitos em voz alta, seu problema não é com o futebol. Acorda.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

O tubarão vermelho

- Vejam! É um tubarão!

Gritou o Carlinhos, que àquela hora estava na parte da frente da caixa de papelão embarcação, ao avistar o baldinho vermelho virado de com a boca pra baixo.

- Um tubarão vermelho!

A angústia tomou conta da tripulação. Qualquer um com menos de sete anos sabe que os tubarões vermelhos são os piores, verdadeiros monstros do mar preparados para virar barcos e devorar navegantes.

- Só há uma coisa a fazer! - pronunciou com voz empostada o Douglas, que era sabidamente a referência intelectual no barco - Devemos oferecer uma virgem em sacrifício!

Carlinhos e Maria se entreolharam, confusos. Que diacho é uma virgem?

- Que diacho é uma virgem?
- Ora, uma virgem, uma virgem é... isso! - e Douglas demonstrou a salvação para seus problemas, com pompa e magnificência.
- Isso é uma folha de árvore - disse Maria, cética como não deveria ser com essa idade. Ela deveria estar alimentando sonhos, gritando loucuras, achando que tudo vai ficar melhor, até que a vida encontrasse a idade mais adequada pra dizê-la que não, tsc tsc, sem chance. Talvez a vida já tenha feito isso, no ano passado, quando seus pais se divorciaram.
- Uma folha de árvore é uma folha na árvore - pronunciou Douglas, sempre pomposamente, tendo o cuidado com as palavras que prenuncia um novo Allen Ginsberg, ou quem sabe só uma pessoa muito chata - Uma folha sem árvore é uma virgem, como todos deveriam saber.

Eles ficaram quietos por um segundo, porque talvez todos devessem saber mesmo. Como puderam ser tão descuidados de sair para enfrentar os faniquitos do alto-mar sem nem estudar primeiro?

- Bom, então a gente joga isso pro tubarão, certo? - fez Carlinhos, o prático.
- Bem... sim, é, isso - Douglas não conseguiu inventar nada mais interessante em cima da hora.
- Então me dá aqui.

Carlinhos tomou a folha virgem em sua mão, mirou-a contra o horizonte e atirou-a ao mar. O vento só teve o trabalho de carregar aquilo pra outro lado, lá pra calçada.

- Puta merda, agora fudeu!

Maria gritou a plenos pulmões. Ela aprendeu esses palavrões ouvindo os pais brigarem, mas não tinha permissão pra dizê-los. Bem, mas agora sua vida estava por um fio, então qual o problema? Ela teria acendido um cigarro ali, se tivesse um cigarro. E um isqueiro. Mas era o alto-mar, não tinha nada disso, só desolação e os três e o tubarão vermelho.

- O que a gente faz agora, Douglas? - Carlinhos perguntava legitimamente apavorado e segurava o amigo pelos ombros.
- Temos que remar o mais rápido que pudermos!

Agora, deixe-me dizer que é claro que esses meninos não tinham um domínio tão completo da língua portuguesa. Afinal de contas, eram apenas lobos do mar, mais acostumados ao grasnar das gaivotas que ao raspar das páginas dos livros virando. Mas você pode imaginar uns "sic" aqui e acolá.

Pegaram seus remos, meteram-nos na grama água e puseram-se a navegar para tão longe quanto possível. Infelizmente crianças são burras e, com um remando de um lado e dois de outro, o barco perdeu equilíbrio e - oh, não! - virou.

VIROU!

Fez splash! na água e teriam gritado "homem ao mar" se não fossem eles mesmos os homens. Ali estava o tubarão, e ali estava seu destino. Maria gritou "caralhoooo!" (ela nunca se sentiu tão livre, a vida é mesmo uma prisão), Douglas olhou para Carlinhos e tascou-lhe um beijo na boca. Carlinhos meio que gostou. A sociedade é uma prisão. Estavam eles no mar, lá vinha o tubarão, tam-tam-tam-tam-tam-tam. E eles sabiam que tinham chegado ao fim porque ouviram o chamado do além, e ficaram surpresos porque descobriram que deus era uma mulher e reclamava que eles estavam sujando suas roupas. "Alguém precisa reescrever os 10 mandamentos", pensou Carlinhos, mas já era tarde demais. Era hora de ir pra casa.








- Bucetaaaaa!

Maria estava se divertindo com esse negócio de morrer.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

As brigas que eu perdi

Na quinta série eu fui pra manhã, não me lembro por quê. Mas lembro por que voltei para a tarde, no começo do segundo semestre: o meu relógio biológico decidiu que 9 da manhã não era hora de estudar, era hora de mandar um barro. E isso numa fase da vida em que você precisa de autorização pra ir ao banheiro não é a melhor combinação.

O campeonato de futebol interclasses era o maior evento da escola, e naquele ano ele seria grande e brutal: entre a quinta série e o primeiro colegial, todo mundo era adversário. O time da minha sala matinal era bom, pra uma quinta série, e eu era o goleiro. Às vésperas do campeonato começar vieram me dizer que eu seria reserva, porque o Felipe ia ser o titular. O Felipe era da panela e eu não (não que eu não tenha tentado me enturmar: virei goleiro só pra ser aceito, queria mesmo era jogar na linha), e aquilo me deixou meio cabreiro porque eu era muito melhor do que ele. E quando eu mudei pra tarde, todo mundo teve certeza que eu tive um ataque de estrelismo, que não aceitei a reserva. Claro que eu preferi confirmar essa versão.

No primeiro dia à tarde, ainda que eu conhecesse quase todo mundo, as coisas mudaram. Mudou a organização social, mudaram os pelos faciais, mudaram as vozes. Fiquei seis meses fora e não pertencia mais àquele lugar. Tanto que no recreio eu fiquei no canto do pátio comendo Foffy's (lembra?) com o Fernando, que era um cara da sexta série que tinha paralisia e não era muito aceito pelas outras crianças da ilha do Senhor das Moscas.

À época das inscrições para o campeonato tinha gente suficiente na minha sala para duas equipes. Sendo a escola um regime de castas, ia ter um time com os melhores e outro com o resto. Como eu era novo, fiquei no time B, junto com os gordos e os gêmeos. O time A já tinha um goleiro, outro Felipe, e esse era meu amigo desde a primeira série e jogava muito melhor do que eu. Como eu nunca gostei desses filmes infantis em que o bando de pernas de pau (que tem o gordo, o japonês, o nerd e a menina, no nosso só faltava a menina) vira um fenômeno do esporte, tentei cavar um lugar no time principal, e consegui depois de mostrar meus talentos futebolísticos em um contra. E, dessa vez, eu ia jogar onde eu queria: na linha.

Caímos no grupo da morte, com a 7ªB, a 8ªA e o primeiro colegial. No primeiro jogo, contra a sétima, muito estudo, muita tática, um a zero pra gente, UM A ZERO PRA GENTE! É possível, vamos lá, vamos... levar uma lavada. 19x1.

O time B da sala estreou, justamente contra a quinta série da manhã, aquela que me desdenhou pelo frangueiro. Foi um massacre. 26x2 pro time da manhã, e eu só pensava que eu não teria tomado aqueles dois gols. O time B nunca mais voltou a quadra depois daquilo, perdendo os dois próximos jogos por W.O.

Mas nós persistimos, e no próximo jogo, contra os metaleiros maconheiros do primeiro colegial, tivemos uma tremenda evolução: perdemos por apenas 17x2. A partir desse momento, nossa briga não era pela classificação, nossa briga não era contra as outras turmas: éramos nós e o outro time da sala, fugindo da honra de ser o pior time do torneio.

Como eles desistiram dos outros jogos, acabaram jogando delicadamente em nossas costas o fardo de ser a defesa mais vazada do torneio. Fomos para o terceiro jogo, contra a 8ªA, e não foi fácil. Eu era muito pequeno, mesmo pra minha idade, e garotos de 14 anos são infinitamente maiores que os de 11. Num lance em que eu estava no gol (no desespero, posições mudam porque vai que um milagre acontece desse jeito) trombei com um desses seres humanos infinitamente maiores e fiquei com uma cicatriz no cotovelo que carrego até hoje. Em outro, levei uma bolada nas costas que o professor teve que paralisar o jogo pra ter certeza de que eu não ia morrer. Acabou a partida e ninguém nem sabia o placar, tamanha a surra, e o professor precisou ficar contando na ficha. Quando ele anunciou, 25x3, eu comemorei. Todos riram, acharam que a bolada nas costas tinha mexido com a minha cabeça, mas a verdade é que, pra mim, foi uma vitória: no único campeonato que nos importava, quem levou a maior goleada não foi a gente. Chupa, time B.

O campeonato seguiu, nós não, e o time da 8ªA sagrou-se campeão, com o da 7ªB em segundo lugar. No ano seguinte, num surto de lucidez, o professor dividiu em dois campeonatos, um para as quintas e sextas séries, outro para a sétima em diante. Dessa vez, chegamos à final, e perdemos por pouco (graças a um frango meu, vejam a ironia). Mas esse parágrafo não importa.

Importa que essa campanha trágica de humilhações e falta de ar ensinou-me, ainda aos 11 anos, uma das mais valiosas lições sobre a vida: o importante é que tem alguém se fudendo mais que você. E, se isso nunca me empurrou à beira do precipício para testar meus limites e evoluir à base de superação, também me permite estar muito mais à vontade com as circunstâncias da vida (na maior parte do tempo, pelo menos). Eu nunca vou ficar chorando no canto porque não escrevo como o Gabriel García Márquez e ainda vou ter um leve regozijo toda vez que ler alguém terminar uma frase com dez pontos de exclamação ou escrever "concertesa". Pequenas vitórias, é isso.

Mas não sigam meus conselhos, sonhem alto. É que toda vez que eu tento fazer isso vejo a cicatriz no cotovelo, e minha resistência à dor é meio baixa, sabe.