sexta-feira, 29 de agosto de 2014

História de fantasmas

Eu tive o mesmo celular velharia por quase quatro anos (a história dele, para recordar, começa aqui e termina aqui) e o deixei para repouso eterno nos primeiros dias de janeiro nesse mórbido 2014. Repouso eterno, no caso, é tirar o chip, desligar e deixar esquecido em cima da mesinha do computador. As pessoas diziam "joga fora, é perigoso". Eu ignorei, afinal que perigo pode haver nisso? Eu achava que sabia de tudo. Eu não sabia de nada.

Duas semanas atrás, primeiras horas da noite. No meu quarto a luz está apagada e só vejo os pontinhos brilhantes dos aparelhos em stand by. Converso com meu pai no telefone sobre as coisas da vida. A voz dele vacila, ele não sabe por quê (mentira). Ouço um ruído grave. Uma luz se acende, apontando para o teto. Toca uma música suave, quatro notas repetidas. Estou confuso, meu pai fica preocupado. Absorvo coragem de um abraço apertado no meu travesseirinho do São Paulo em formato de flor e vou atrás da fonte de perturbação. É o celular antigo. Simplesmente ligou, oito meses depois, para tocar o despertador. O horário marcado era 8h10 da manhã. Não estava nem próximo desse horário. Minha segurança me trai, deixo o celular novo cair no chão. Ouço baixinho uma voz gritar, lá de baixo: "filhão? Filhão? Filhãããão"

"Oi"

"Ah, taí? Beleza"

(mentira)

Conto a história, ele acha estranho. Acendo a luz do quarto, só por precaução. Aperto o botão de desligar o despertador. Que loucura. Eu hein.

Segue a vida. No dia seguinte, novamente o celular liga e desperta. 8h10. São 19 e alguns minutos. E assim no outro dia. E no outro. Eu não tiro a bateria. Algo me impede. O que será? Passa uma semana. Duas.

O fato de esse celular ter permanecido em coma induzido por oito meses e começar a dar sinais tortos de vida agora me fascina. Nunca me liguei em fenômenos metafísicos ou experiências extra-corpóreas; nada disso me entra na cabeça. Acredito na ciência (e na sua falibilidade), acredito no que pode ser explicado sem apelar para a fé, acredito que a música é matemática e que a vida acaba e nós seremos devorados pelo esquecimento. Eu sempre contrapus essas questões como se elas fossem diametralmente opostas: fé ou ciência, doutrina ou tecnologia. E então eu via, bem à minha frente, com luz e som, céu e inferno se chocando, preto e branco se fundindo sem virar cinza. O que acontece no meu quarto não é só um telefone celular tendo um comportamento inesperado (que, paradoxalmente, é o que sempre se espera de um desses); o que acontece no meu quarto é um clamor desesperado. De todos os fantasmas das tecnologias passadas.

Eu ouvi ali, em quatro notas repetidas, os seus lamentos, o ranger de suas engrenagens, o zumbir de seus radiadores, o clicar de seus botões, o batucar de seus cascos, o metralhar de suas teclas, o arranhar de suas agulhas, o shlop shlop de seus moinhos. Eu ouvi a obsolescência, ouvi o chiado da ligação passando pelo túnel do tempo. Eles encontraram o portal para o presente naquele celular velho largado num quarto com Game Boy Colors e mouses com fio, e eles gritaram por atenção, e eles exigiram como exigem aqueles que já prestaram tantos serviços e construíram a sociedade como ela é hoje. E eu ouvi seu apelo, seu último desejo: uma derradeira volta pelo mundo que os esqueceu, uma última poesia em T9 no mundo que escreve tweets por comando de voz.

E eu joguei fora aquele negócio. Vá chantagear a puta que o pariu.

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