terça-feira, 23 de abril de 2013

Mijo porque é líquido

A vida, como a gente acha que a vive, é uma ilusão. A liberdade, a deliberação, os planos, as prioridades, nada disso existe de verdade. Essa ideia de controle que temos sobre os trilhos dessa maria-fumaça com Nike Shox é tão tola que pode ser despedaçada num instante, pela mais mínima das manifestações da natureza.

Pois há as doenças, há os eventos climáticos, há o acaso, e tudo isso pode por abaixo o mais detalhado dos planejamentos. Estou sendo vão, então vou direto ao ponto: qualquer decisão fundamental sobre os seus rumos e descaminhos vale menos que uma puta vontade de mijar.

Se as oportunidades batem na porta só uma vez, como dizem os profetas da autoajuda, você pode muito bem estar largando um barro enquanto a ninfa do destino está do outro lado da parede, nua, com a chance de mudar a sua vida nas delicadas mãos. Não se engane, ela não vai esperar.

E se digo tudo isso, senhores, é para dar alguma importância à história que vou narrar, e para não deixá-la parecer nojenta gratuitamente.

A minha bexiga adquiriu, nos últimos tempos, um estranho hábito: ela diz "vontade de fazer pipi, queira encaminhar-se ao vaso sanitário mais próximo, grata", aí eu vou e faço o que ela pede. Até aí, igual pra todo mundo (talvez a de vocês não seja tão educada quanto a minha, mas eu a adestrei bem). Só que ela tem tipo um olho na testa e vê o que está acontecendo fora das paredes do meu modesto organismo, e quando percebe que estou fora de casa (tipo quando observa movimento de pessoas - entre as quais mulheres - ou a ausência de videogames), a maldita tem curtido não liberar todo o carregamento de uma vez. Então eu vou, faço o que tenho que fazer, lavo as mãos (muito importante) e ela solta o setTimeOut(). Dali uns 20 minutos, vem uma segunda onda de necessidades. Só que, quando eu estou fora do meu lar, costumo deixar para fazer a mijância pouco tempo antes de partir. O resultado: quando chega a tal da segunda onda, eu tô na rua. E aí, senhoras e senhores, é hora de aventura.

A tal da bexiga que era educada começa a ficar "VAI LOGO CARALHO", os passos são tortos, a calça fica apertada, o metrô demora mais pra passar, começa a chover, goteiras por todos os lados, tsunami, copos d'água, até praia aparece no meio de São Paulo, com as ondas se debruçando suavemente sobre a areia, em preguiçosos movimentos contínuos, pra frente e pra trás, pra frente e... acorda, concentra. Cada pessoa que eu vejo, eu odeio, cada farol que fecha eu tenho vontade de seguir andando assim mesmo e que se foda essa merda porque de que vale viver se há um filho dentro de você que já entrou em ponto de fusão há 10 minutos? Eu fico pensando se pega mal mijar no vão entre o metrô e a plataforma, ou na frente dessa casa, ou dessa, ou dessa, ou dessa árvore, ou nesse mendigo. Fico pensando se não é melhor parar de segurar, deixar rolar e ir viver como um pária em algum lugar esquecido por Satã. Mas eu sou forte, persistentes leitores, eu sou brasileiro, e eu não desisto nunca (não quando não tem outra calça lavada pra eu usar). Cada passo é uma vitória. A bexiga não grita mais, já teve um colapso, mas eu ainda consigo segurar com a força do pensamento - é assim que estimulavam os poderes do Akira, muita água.

Chego em casa, vou direto ao banheiro e mijo por dois minutos sem parar. Estou chorando, e não é brincadeira. Essas lágrimas não são desabafo sentimental, são apenas o extrato de um corpo que fez o melhor que podia e está esgotado. Venci.

E nenhum plano que eu tenho foi adiado, mas só nesse trajeto eu poderia ter sido preso, ter me matado, ter me convertido ao eremitismo, ter ido parar nos jornais com a honra manchada para sempre - a honra é a virilha de uma calça jeans.

Mas deu tudo certo, e estou aqui para viver mais um dia. Em frente.

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