domingo, 30 de junho de 2013

A ponte (parte 1)

Foram dez minutos olhando para baixo, para o rio, numa visão que parecia de história em quadrinhos - se fosse um mangá, você poderia ver as hachuras apontando para o centro do quadro, para o violento curso de água que se atropelava, da esquerda para a direita, rumo a ninguémsabeoque. Se eu fosse mais brega ou mais sensível, traçaria um paralelo com a vida, mas deixemos isto para lá. Depois desses dez minutos ou seiscentos segundos ou três-miojos-e-um-terço eu movi o pescoço como um guindaste para apontar minha cabeça para a montanha à frente e depois para o céu azul dessaturado acima. Por mais horroroso que seja o céu desse lugar, ainda é melhor que o rio que grita "morte!". Dei um passo para trás e então notei, à minha esquerda, um rapaz que já se projetava da borda da ponte para o centro da Terra, e ele foi, foi, e nem deu pra ouvir quando bateu na água lá embaixo. Tinha 18 ou 19 anos, passei uma tarde na casa da família dele há algumas semanas. Mais uma pessoa que se encaixa no mórbido mosaico cultural dessa cidade, a cidade sem nome, a cidade da ponte.

A ponte

1, suspensão e dúvida

Eu cheguei nesse lugar maluco há uns dois meses, por acaso. Tão por acaso que nem sei que desvio foi que peguei na estrada pra vir parar aqui. Tão por acaso que não há placas apontando pra cá, porque nenhuma placa ensina a chegar a um lugar sem nome. Um lugar que mereça ser chegado deve ao menos ter um nome, o leitor há de pensar, e eu concordo. Mas tem algo fascinante aqui, e vou tentar descrever da maneira menos prolixa e mais direta possível (só entenda que haverá enfeites romatiquescos aqui e acolá, porque eu não consigo evitar).

A minha primeira impressão foi de que se tratava de uma cidade fantasma: algumas poucas ruas com casas vagabundas pontilhando as laterais, um posto de gasolina sujo, uma igreja abandonada, umas vendinhas e tal. Durante o dia, só se ouve o rugido feroz do rio e o uivo descompassado do vento, dois animais elementais brigando por atenção. À noite, somam-se os respingos piscantes da guizalha dos grilhos e, meudeus, o barulho de gente trepando. Aqueles gemidos em rápidos fade-ins e fade-outs misturando-se uns aos outros na vizinhança, como uma alucinação. Mas estou pulando algumas etapas, voltemos um pouco.

A cidade fica às margens de um rio, o rio que eu citei antes; ele corta, divide, risca o lugar onde termina o mundo como nós o conhecemos e começa esse curioso povoado. Para atravessá-lo há a ponte, que eu também já falei, e digo isso porque esses dois elementos são definidores em toda a história, o fim e a suspensão, a morte e a dúvida.

Assim que cheguei, a primeira imagem que vi foi semelhante à narrada anteriormente: uma mulher corpulenta, cuja idade não dava pra saber pela distância, deixava-se rolar pelo ar até o curso de água. Deixei o carro parado na borda da estrada, porta aberta e tudo, e corri para a ponte, apenas para não ver a infeliz vítima da gravidade. É algo chocante ver uma pessoa saltar a morte, então me deixei ficar por uns minutos, voltei para o carro e segui para a cidade.

2, todo mundo vai pular

Não vou citar o nome de ninguém, porque não seria justo com a cidade, coitada. Mas tem esse cara, aposentado por invalidez, que fica arrastando a perna esquerda continuamente num caminho quadrado ao redor de um pequeno quarteirão que tem um restaurante e uma loja de conveniências. Ele é desses caras que conhecem tudo ao redor - porque afinal não faz nada da vida além de andar em movimentos repetitivos e conversar com todo mundo que passa - e é exatamente o tipo de gente que você procura quando chega num lugar desconhecido.

Nenhuma informação importante me foi dada de cara, mas era tão simpático o senhor aleijado que a conversa rolou por um tempo, até que me senti à vontade pra comentar da mulher que pulou da ponte. Ele me respondeu, sentem-se primeiro, "o que é que tem?". Fiquei meio desconcertado, porque se ele não se sente abalado com a notícia do suicídio de alguém - provavelmente alguém que ele conheceu, estamos falando de um lugar muito pequeno -, não sei como eu poderia explicar a gravidade da situação. Mas então ele riu, revelando um senso de humor insuspeito, e disse, espero que vocês não tenham se levantado, "não se assusta, forasteiro. Aqui é assim, todo mundo um dia vai pular da ponte".


3, tradição cultural

Vou te poupar de todas as minhas reações ridículas subsequentes. Acontece assim: o suicídio é uma tradição cultural da cidade. Não de qualquer jeito: sempre de cima da ponte, sempre pra dentro do rio - que, assim como a cidade, não tem nome. São apenas "a ponte" e "o rio". Não é assim como o cara disse, todo mundo vai pular. Existem acidentes, tem gente que parte pra outro lugar, e tem sempre quem quer viver mesmo até quando der e pronto - embora, depois de dois meses nesse lugar de merda, eu já consiga respeitar mais a vontade de quem opta pelo contrário.

O mais divertido - se não for um pouco sádico usar o termo "divertido" aqui - é que toda a filosofia flutuante da cidade está a algumas passadas de distância da positividade forçada do pensamento ocidental. Não tem "nunca desista dos seus sonhos", nem "agarre todas as oportunidades", tampouco "nada como um dia após o outro". Não existe autoenganação: se eles acham que as coisas não vão dar certo, não ficam lutando com isso. O suicídio não é visto como uma fuga, mas como uma resposta a um chamado. Nunca consegui perceber se eles entendem o quanto a morte é definitiva e se eles pensam que a coisa termina mesmo depois disso. O que me pareceu é que eles não se preocupam. É como ganhar dinheiro: a gente nunca pensa no quão pouco sentido isso faz, a gente só segue o fluxo. Eles seguem o fluxo, literalmente até. Nada a ver com felicidade ou tristeza. Eles nem tem disso aqui; é engraçado como a desimportância da morte também tira o peso dos estados emocionais. Não é que eles são como robôs. Eles só são práticos.


(continua qualquer dia)

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