domingo, 17 de fevereiro de 2013

As coisas estão melhorando

O sol já tinha se escondido havia algum tempo, e tudo que restava na paisagem era o recorte do Mateus desenhado pelos traços brancos da lua. Ele finalmente enterrou todas as partes em lugares diferentes do parque, e isso praticamente enxugou todas as suas forças - e olha que o Mateus tem um bom porte físico e é acostumado a trabalhos braçais. "Que merda", ele pensou, "por que eu continuo fazendo isso?". Agora era tarde pra voltar e inútil reprocessar o arrependimento, até porque as atividades ainda não estavam encerradas: faltava limpar, recolher, apagar todos os rastros. E, pior, ele ainda tinha um compromisso pouco depois, e, àquela altura estava fedendo a suor, terra e sangue.

"Ela tem olhos bonitos", era o que todos diziam da Angelina, pra não dizer que ela não tinha era nada de especial. Os olhos eram claros, mas não chegavam a ser bonitos, e não conseguiam melhorar muito a sua cara alongada, o nariz achatado e a boca torta. Não era necessariamente feia, e os seios, apesar de caídos, com o sutiã certo conseguiam causar uma boa impressão em quem não estava habituado ao convívio com essa área do corpo - especialmente os amigos nerds da Angelina, que pareciam se derreter por ela. Mas ela tem um namorado, um novo namorado, e ele é alto, tem braços grossos e um emprego fixo - muito embora ela ainda não tenha sacado muito bem o que ele faz. Hoje eles vão ter um jantar romântico num restaurante mais ou menos chique da cidade. Os garotos da idade da Angelina mal tem dinheiro pra comprar pão de queijo congelado no mercado, mas o Mateus tem até Vale Refeição. Ele nem deveria precisar mostrar o RG pra provar que é maior de idade, bastava apresentar o Sodexo - mas a essa altura Angelina já estava vagando muito longe, e ela ainda nem tinha escolhido o sutiã certo para essa noite.

O Goku na camiseta do Marcos já não vestia vermelho havia alguns anos, mas ele ainda gostava dela, desbotada e cheia de bolinhas brancas. A camiseta era uma espécie de escudo e cartão de visitas: sim, eu gosto dessas coisas - ela dizia por ele -, podemos pular a parte em que eu me envergonho toda vez que me perguntam o que eu curto. Ele só sentia vergonha de falar, verbalmente mesmo. Se a pessoa descobrisse isso sem precisar perguntar, ele não fazia objeções. E funcionava como um filtro também: o Marcos nunca foi bom de fazer amigos, e a camiseta garantiria que só se aproximariam dele quem tivesse alguma coisa em comum. Ironicamente, foi por ter muitas coisas em comum que ele nunca despertou a reciprocidade amorosa da Angelina. Mas mudar agora seria se entregar, se render, e, pior, admitir. Então o Goku vai continuar usando essa roupa até ela ficar branca.

As aulas de violão iam mal, exatamente como antes foram as de piano, violino e harpa. Andreia dizia que gostava tanto de música que precisava aprender a tocar algo, mas a verdade é que o tipo de música que ela gostava era feito por sintetizadores e softwares, e ela não conseguia encaixar aquilo nas cordas de nailon do violão. O problema é que ela já tinha 19 anos e nem ideia do que fazer da vida. Não tem faculdade na cidade, e ela não passou em nenhum dos vestibulares que prestou nas cidades vizinhas - veterinária em um, nutrição em outro, educação física, publicidade. Trabalhou dois meses como secretária de um advogado - que a assediou -, outros três meses na farmácia - envenenou um velhinho porque confundiu as caixas dos remédios -, e já vai fazer um mês como balconista na loja de gibis que o irmão frequenta. Ela não sabia nada sobre quadrinhos, mas o Marcos explicou algumas coisas, o dono da loja outras, e os clientes que vão lá já sabem exatamente o que querem, então ela nem tem tanto trabalho assim. Mas ela quer mais, embora não saiba o quê. A mãe dizia que ela era inteligente, mas ela sabia que não era, e o Marcos sempre fez questão de confirmar esse ponto de vista, naquela cruel sinceridade fraternal que a gente acha que vai fazer bem no futuro. Também não era lá muito esforçada, mas se o mundo é assim tão democrático também deveria guardar um lugar pra quem é burra e preguiçosa. Ela achou que esse lugar pudesse ser a música, mas já descobriu que essa carreira pode ser muito difícil pra quem não consegue fazer nem um mi menor.

O escritório do doutor Munhoz estava às moscas, especialmente depois que correu na cidade a história de ele ter tentando se aproveitar da antiga secretária. Não era verdade, e esse tipo de comportamento coletivo de cidade do interior já estava lhe sugando as forças. Nada disso era o que ele queria, mas era tudo parte do plano: mudar para uma cidadezinha pacata, levar a filha pra morar com ele e usar o ambiente hospitaleiro e tranquilo para se reaproximar dela. Mas mudanças são difíceis, e a adolescente nunca engoliu muito bem o fato de ter que largar a mãe pra ir morar com um pai ausente que ela desprezava. Pra ser sincero, também não era isso que Munhoz tinha em mente, mas você não pode deixar a própria filha desamparada quando a mãe dela é internada numa clínica de reabilitação. Ele viu como uma oportunidade de mudança, de limpeza; na prática, está falido, viu a carreira e a reputação irem para o lixo só por querer ser legal demais com a funcionária incompetente e, o pior de tudo, a filha não só não passou a respeitá-lo como não voltou pra casa na noite passada. Numa cidade desse tamanho não dá pra esconder a própria presença ou - ele descobriu - a própria história, mas a menina não estava em lugar nenhum. "Ela deve voltar logo", ele pensava, sem saber se a abraçaria ou castigaria - um desses problemas de ser um pai inexperiente, mesmo que a filha já tivesse a mesma idade que ele tinha quando irresponsavelmente engravidou a namoradinha do colégio.

A tarde estava agradável e a temperatura era ótima. Essa talvez fosse a única coisa naquele cidadezinha que a Alice gostava: o clima era sempre muito bom. De resto, ela não conseguia fazer amizade com ninguém, embora não se esforçasse nem um pouco para isso; sentia falta da mãe, da vó, da cadelinha preta; não conseguia suportar a presença do pai, o canalha que só aparecia duas vezes por ano e foi responsável por fazer dela uma desajustada social e da mãe uma alcoólatra. O pai sempre dizia que Alice o desprezava, mas a verdade era um pouco mais cruel: ela o odiava. Tanto que seu único momento de felicidade nessa nova vida juntos foi quando o senhor-todo-poderoso-advogado passou uma noite na delegacia acusado de aliciar uma subordinada. Ela ficou tão feliz que até engoliu a timidez e a antissocialidade e procurou a pobre Andreia para se aproximar dela. Não durou muito, já que uma hora a empolgação passou e tudo que ela via na garota era derrota e roupas feias. Mas esta tarde, em especial, estava agradável, tanto pelo clima quanto pela visão do rapaz moreno que descarregava algumas caixas aparentemente bem pesadas de cima de um caminhão. Ela não se lembrava da última vez que teve esse acesso momentâneo de paixão platônica, nem do quanto fazia bem. Mas então o Mateus olhou pra ela, e antes que ela pudesse apontar o rosto para o chão ele veio, simpático e sorridente. Entre perguntas constrangidas e poses calculadas, ele a convidou para tomar um sorvete no parque, agora que o sol começava a dar sinais de cansaço. "Ora", ela pensou, "um passeio ao por-do-sol com um moço bonito. As coisas estão melhorando".

Nenhum comentário: