terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

As brigas que eu perdi

Na quinta série eu fui pra manhã, não me lembro por quê. Mas lembro por que voltei para a tarde, no começo do segundo semestre: o meu relógio biológico decidiu que 9 da manhã não era hora de estudar, era hora de mandar um barro. E isso numa fase da vida em que você precisa de autorização pra ir ao banheiro não é a melhor combinação.

O campeonato de futebol interclasses era o maior evento da escola, e naquele ano ele seria grande e brutal: entre a quinta série e o primeiro colegial, todo mundo era adversário. O time da minha sala matinal era bom, pra uma quinta série, e eu era o goleiro. Às vésperas do campeonato começar vieram me dizer que eu seria reserva, porque o Felipe ia ser o titular. O Felipe era da panela e eu não (não que eu não tenha tentado me enturmar: virei goleiro só pra ser aceito, queria mesmo era jogar na linha), e aquilo me deixou meio cabreiro porque eu era muito melhor do que ele. E quando eu mudei pra tarde, todo mundo teve certeza que eu tive um ataque de estrelismo, que não aceitei a reserva. Claro que eu preferi confirmar essa versão.

No primeiro dia à tarde, ainda que eu conhecesse quase todo mundo, as coisas mudaram. Mudou a organização social, mudaram os pelos faciais, mudaram as vozes. Fiquei seis meses fora e não pertencia mais àquele lugar. Tanto que no recreio eu fiquei no canto do pátio comendo Foffy's (lembra?) com o Fernando, que era um cara da sexta série que tinha paralisia e não era muito aceito pelas outras crianças da ilha do Senhor das Moscas.

À época das inscrições para o campeonato tinha gente suficiente na minha sala para duas equipes. Sendo a escola um regime de castas, ia ter um time com os melhores e outro com o resto. Como eu era novo, fiquei no time B, junto com os gordos e os gêmeos. O time A já tinha um goleiro, outro Felipe, e esse era meu amigo desde a primeira série e jogava muito melhor do que eu. Como eu nunca gostei desses filmes infantis em que o bando de pernas de pau (que tem o gordo, o japonês, o nerd e a menina, no nosso só faltava a menina) vira um fenômeno do esporte, tentei cavar um lugar no time principal, e consegui depois de mostrar meus talentos futebolísticos em um contra. E, dessa vez, eu ia jogar onde eu queria: na linha.

Caímos no grupo da morte, com a 7ªB, a 8ªA e o primeiro colegial. No primeiro jogo, contra a sétima, muito estudo, muita tática, um a zero pra gente, UM A ZERO PRA GENTE! É possível, vamos lá, vamos... levar uma lavada. 19x1.

O time B da sala estreou, justamente contra a quinta série da manhã, aquela que me desdenhou pelo frangueiro. Foi um massacre. 26x2 pro time da manhã, e eu só pensava que eu não teria tomado aqueles dois gols. O time B nunca mais voltou a quadra depois daquilo, perdendo os dois próximos jogos por W.O.

Mas nós persistimos, e no próximo jogo, contra os metaleiros maconheiros do primeiro colegial, tivemos uma tremenda evolução: perdemos por apenas 17x2. A partir desse momento, nossa briga não era pela classificação, nossa briga não era contra as outras turmas: éramos nós e o outro time da sala, fugindo da honra de ser o pior time do torneio.

Como eles desistiram dos outros jogos, acabaram jogando delicadamente em nossas costas o fardo de ser a defesa mais vazada do torneio. Fomos para o terceiro jogo, contra a 8ªA, e não foi fácil. Eu era muito pequeno, mesmo pra minha idade, e garotos de 14 anos são infinitamente maiores que os de 11. Num lance em que eu estava no gol (no desespero, posições mudam porque vai que um milagre acontece desse jeito) trombei com um desses seres humanos infinitamente maiores e fiquei com uma cicatriz no cotovelo que carrego até hoje. Em outro, levei uma bolada nas costas que o professor teve que paralisar o jogo pra ter certeza de que eu não ia morrer. Acabou a partida e ninguém nem sabia o placar, tamanha a surra, e o professor precisou ficar contando na ficha. Quando ele anunciou, 25x3, eu comemorei. Todos riram, acharam que a bolada nas costas tinha mexido com a minha cabeça, mas a verdade é que, pra mim, foi uma vitória: no único campeonato que nos importava, quem levou a maior goleada não foi a gente. Chupa, time B.

O campeonato seguiu, nós não, e o time da 8ªA sagrou-se campeão, com o da 7ªB em segundo lugar. No ano seguinte, num surto de lucidez, o professor dividiu em dois campeonatos, um para as quintas e sextas séries, outro para a sétima em diante. Dessa vez, chegamos à final, e perdemos por pouco (graças a um frango meu, vejam a ironia). Mas esse parágrafo não importa.

Importa que essa campanha trágica de humilhações e falta de ar ensinou-me, ainda aos 11 anos, uma das mais valiosas lições sobre a vida: o importante é que tem alguém se fudendo mais que você. E, se isso nunca me empurrou à beira do precipício para testar meus limites e evoluir à base de superação, também me permite estar muito mais à vontade com as circunstâncias da vida (na maior parte do tempo, pelo menos). Eu nunca vou ficar chorando no canto porque não escrevo como o Gabriel García Márquez e ainda vou ter um leve regozijo toda vez que ler alguém terminar uma frase com dez pontos de exclamação ou escrever "concertesa". Pequenas vitórias, é isso.

Mas não sigam meus conselhos, sonhem alto. É que toda vez que eu tento fazer isso vejo a cicatriz no cotovelo, e minha resistência à dor é meio baixa, sabe.

3 comentários:

Babi disse...

Conserteza o melhor texto!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Priscilla disse...

"Eu nunca vou ficar chorando no canto porque não escrevo como o Gabriel García Márquez e ainda vou ter um leve regozijo toda vez que ler alguém terminar uma frase com dez pontos de exclamação ou escrever "concertesa". Pequenas vitórias, é isso." - lição aprendida aqui hahaha :D

Fer Teshima disse...

Eu acredito na felicidade oculta nas pequenas vitórias, e sempre ver o lado bom das coisas. Dia desses minha amiga disse: você devia escrever um livro, adoro seus textos! Quase deu tempo de eu ficar feliz, não fosse o complemento dela: "comecei a ler 50 Tons de Cinza e achei muito parecido com seu estilo de escrita". Veja bem, eu nunca li 50 Tons, eu mal sei o enredo, mas algo me diz que ele é uma porcaria gigante. MAASS, como disse minha amiga "isso não importa boba, a mulher tá rica!". E isso deveria ser o suficiente né?
Eu já perdi o propósito desse comentário. Mas eu lembro que deveria ser motivador, pra você não parar de escrever, afinal eu gosto muito das suas crônicas.