segunda-feira, 29 de julho de 2013

Nas narinas da loucura

Normalmente eu penso num assunto (ou numa piada) e então desenvolvo a questão mais ou menos por cima, na cabeça, até saber se dá jogo e se vale a pena sentar e escrever. Mas tem vezes (como agora) em que eu simplesmente clico em "nova postagem" e começo a escrever. Esse é o tipo de texto que eu tenho medo.

Ainda que o planejamento que eu faço seja um tanto raso (não cabe tanta coisa assim na cabeça, menos ainda na minha), ao menos ele me diz previamente em que lugares eu vou pisar, cuidado com essa quina, talvez seja melhor começar por aqui e depois ir pra lá. É um jeito covarde de escrever, mas eu vivo de um jeito covarde, então, cagão por cagão, ao menos há honestidade. Mas esses textos que saem do nada e sabe-lá-satanás pra onde vão são perigosos. Eu posso bater a cabeça. Posso pensar alto. Vocês podem me ver cutucando o nariz.

Mas todo mundo cutuca o nariz. É verdade. Só que o problema não está exatamente na invasão digital, está na evasão: quando alguém te vê com o dedão lá, vai querer saber que fim você vai dar pra meleca depois. E isso pode dizer muita coisa sobre você: é um dos prudentes e zelosos pelo circuito social que guardam o muco num pedaço de papel que será cuidadosamente depositado na lata de lixo orgânico? É um hedonista que gosta de criar a sua própria colônia de estalactites sob o tampo da mesa? É um aventureiro, servo do supremo acaso, que faz uma bolinha e dá-lhe um peteleco para os confins da aleatoriedade?

A escala de possibilidades continua. Nada disso existe se ninguém te vê cutucando o nariz. O nariz é o cofre que guarda seus segredos, o nariz é o portal por onde as mil variações dimensionais de um homem trafegam, indo e voltando, cada uma carregando nos braços a verdade, a grosseira verdade. Se ninguém te vê cutucando o nariz você é só @voce, o avatar personalizado, a figura pública, o produto bem aparado construído a partir de cem mil neuras demoníacas devidamente processadas e escondidas nas cavidades nasais. Mas se alguém vê o momento em que seu dedo - a chave - entra pela sala dos mistérios, você morre e volta a ser aquele, o horrível, o que foi empurrado para o campanário da catedral pelos gritos da professora. São apenas segundos, mas se o tempo passa e desliza e desaparece graciosamente rumo ao passado, esses segundos são permanentes, estáticos, ficam flutuando naquele mesmo ponto sem ter para onde ir.

O que eu quero dizer é: se algum dia se sentarem à minha mesa, procurem manter as mãos sobre ela, ok?

sexta-feira, 26 de julho de 2013

O estagiário, esse leproso

Esse texto deveria ir para o Vida corporativa de bosta, mas como este é apenas um fantasma do passado arrastando suas correntes pela noite enquanto uiva o número do seu CNPJ, estamos aqui.

O estagiário, o amigo do blog deve saber, é o profissional novato, ainda não muito experimentado nas agruras do simulacro de pós-apocalipse que é o mercado de trabalho e que possui vínculo com uma unidade de ensino - o que é por si só bastante contraproducente, já que a pessoa passa metade do dia numa sala de aula aprendendo como fazer as coisas e a outra metade num escritório descobrindo que tudo que ensinaram na faculdade não se usa mais na vida prática há uns catorze anos.

Só que as raízes do organismo social caminham por direções inesperadas, e o estagiário, aquele que está lá para aprender, de repente virou o único e eterno responsável por toda bosta que acontece num prédio espelhado. O portal de notícias publicou o obituário do vereador enquanto ele ainda está vivo? Culpa do estagiário. A loja de departamentos respondeu grosseiramente à reclamação da cliente que foi soterrada pelo guarda-roupas que estava com uma perna bamba? Culpa do estagiário. A página do Facebook do canal de TV esportivo postou uma foto do Adriano Gabiru com um texto sobre o aniversário da Sharapova? O estagiário vai ser demitido kkk.

Sejamos razoáveis, amigos. Atribuir ao estagiário (nunca é "um" estagiário, é "o" estagiário, porque todos são a mesma merda) a responsabilidade por tudo que sai de errado nessa vida não é só bastante injusto como é covarde. Por debaixo dessa piadinha inocente sobre a inexperiência do jovem profissional há uma sutil afirmação: quem já tá nessa vida há bastante tempo criou sobre a pele uma camada invisível de fodeza que o torna imune ao erro. Se alguém errou, é o moleque. E, ora bosta, é esse tipo de hierarquização etária trouxa que torna a vida profissional uma coisa tão desagradável de encarar.

E você pode dizer que é só piada, que é só gracinha, e eu direi que de piada sem graça o mercado de trabalho tá cheio. E de gente que assume o erro, tá vazí. É mais fácil ficar na chacota de que o estagiário só erra, que o carioca é folgado, que o nordestino não gosta de trabalhar, que mulher bonita só tá em cargos altos porque deu pra alguém. Principalmente porque lá no fundo, eu sei (não me engane), muita gente acredita mesmo nisso. A vida corporativa é um mundo 2D em que estereótipos são verdades. E, como a gente trabalha mais do que vive, você já sabe o impacto negativo dessa história nas nossas vidas alegres.

E se você reparar que em determinado momento o texto deixou de ser uma alegre tiração de sarro e passou a ficar carrancudo e amargo, é porque foi nessa hora que eu descobri que o Bruce Springsteen vai tocar em São Paulo (depois de eu ter gastado os olhos da bunda para ir vê-lo no Rio). Queria ter um estagiário pra socar agora.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Mundo bizarro

Ano atrás, estava eu dentro do falecido Perus via Lapa 8171/10 a caminho da casa onde já morei quando aconteceu algo bizarro que eu gostaria de compartilhar com vocês. É a primeira vez que conto isso pra alguém pela internet hoje. Parece simples e insignificante, mas crer nisso talvez tenha sido o meu erro durante todo esse tempo.

Minha cabeça manchava a janela com uma pequena amostra da quantidade massiva de óleo produzida diariamente (CRESCER CABELO QUE É BOM NADA, NÉ?!) e meus ouvidos provavelmente eram estropiados pelo alto volume de qualquer porcaria que eu estivesse ouvindo. Estava distraído, relaxado. O ônibus parou num ponto, pouco antes de subir a magnífica Ponte do Piqueri (se houvesse uma lista com as 7 100 maravilhas da zona noroeste de São Paulo, essa ponte passaria perto de entrar), e pessoas embarcavam e outras pessoas desembarcavam e outras pessoas ficavam de boa, esperando outros letreiros, outros destinos. Levantei os olhos da contemplação invisível e passei panoramicamente pela massa de gente que estava de pé a olhar para outro lugar, quando eu vi, eu vi. Eu me vi lá fora.

Não era reflexo na janela, não seja besta. Mas claro que não era eu também (nem meu irmão). Era só um cara que tinha mais ou menos a minha altura, a mesma pele cor de diarreia, o mesmo cabelo cortado baixinho e a mesma blusa de moleton que eu usava de vez em quando. Mas de cara, o primeiro reflexo que eu tive foi de achar que era eu lá fora, e então, por uma garradejogadordosãopaulo de segundo, o universo fendeu, tudo parou, algo mudou. Era como um tilt, um tropeço do tempo. E o ônibus seguiu, e eu segui, e aqui estamos.

Mas só agora (ou esses dias) me ocorreu que aquela sensação estranha pudesse não ser só uma aleatoriedade. Eu acho que, na verdade, naquele momento eu fui transportado para uma dimensão paralela. Acho que a pessoa que estava no ponto de ônibus era eu, sim, e o contato visual de uma pessoa consigo mesma (se ela não for vesga) foi a tela azul que forçou o sistema a rearranjar o espaço, e então eu fui pra outro lugar, e nesse outro lugar o cara no ponto era só um cara parecido comigo.

Impossível não imaginar o que aconteceu com o outro eu, o que estava esperando o ônibus. Ele hoje pode estar rico, pode ter crescido cabelo do nada, pode estar casado, pode estar feliz, pode estar famoso. Pode ter comido a Isis Valverde e tocado com o Michael Jackson (nessa outra dimensão, o Michael Jackson não morreu). E assim como há essa outra dimensão, pode haver mais. Em alguma delas eu posso inclusive morar na Lua.

Eu poderia ter mil vidas. Usando o título do blog como dica, adivinha qual é essa aqui.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Mil fantasias

Essa é a semana Só Pra Contrariar no blog (mil piadas), e como essa nova categoria de análise de músicas tem se mostrado um sucesso (porque sucesso pra mim é conseguir arrumar algo pra postar, não tem nada a ver com aceitação popular), nada mais previsível que isso aí que você acabou de deduzir sozinho.


Em 1993, quando o presidente era o Itamar e a moeda era a URV o Cruzeiro/Cruzeiro Real, quando o Brasil ainda era tri e o povo clamava por Romário na seleção, a banda dos irmãos Pratorraso lançou seu primeiro álbum e seu primeiro sucesso, "Que se chama amor". Uma linda canção romântica, não? Veremos.

Como é que uma coisa assim machuca tanto
E toma conta de todo o meu ser?
É uma saudade imensa que partiu meu coração
É a dor mais funda que a pessoa pode ter

Olha. Como dizer isso. Ahn. Pode ser amor e tal, ninguém está julgando, mas acho que há um foco específico de modalidade de amor feito (não amor sentido) aqui. Com até algumas indicações de por onde o amor entra.

Você pode achar que o pagode romântico nunca primou pela qualidade das letras, temas, arranjos ou dancinhas, mas convenhamos que é muito engraçado ouvir um cara chamando o pau de outra pessoa de "saudade". Provavelmente o melhor apelido peniano já feito.

É um vírus que se pega com mil fantasias
Um simples toque de olhar

A menos que haja um tipo particular de vírus que se aloje nas fantasias de pirata da ladeira Porto Geral, isso aqui tá mais pra doença venérea que qualquer outra coisa. O problema é o lance do "mil fantasias": é como se não bastasse um fetiche ou dois, mas anos e anos explorando as possibilidades da bizarria sexual para enfim merecer esse supervírus que se transmite pelo contato ocular. Não é conjuntivite.

Me sinto tão carente, conseqüência desta dor
Que não tem dia e nem tem hora pra acabar

Estamos conhecendo mais detalhes sobre a doença. Ela ataca também o lado psicológico do enfermo, levando à carência - fora a dor física. E, o mais estarrecedor: é para sempre! Ou o período de incubação ainda é desconhecido pelos cientistas, não ficou claro.

O amigo pode pensar que Alex Pirrê está com HIV, mas lembre-se que a AIDS em si não provoca dor no paciente. Então fica a dúvida: qual é o nome dessa doença sexualmente transmissível, que entra em contato pelo olho (não ficou claro qual deles) e causa dor e carência? Estamos diante de um mistério clínico, senhoras e senhores, chamem o George Clooney.

Aí eu me afogo num copo de cerveja
E que nela esteja minha solução
Então, eu chego em casa todo dia embriagado
Vou enfrentar o quarto e dormir com a solidão

MAIS DETALHES EMBASBACANTES! E que claramente desafiam a medicina e, por que não, a ciência em seu estágio atual. Notem que ele diz que se AFOGA num copo de cerveja. Ou esse é um copo inimaginavelmente grande (improvável), ou ele caiu numa piscina e chamou de copo (o que mostraria que um dos sintomas da doença é a dislexia), ou - tirem as crianças da sala - o vírus de nome ainda desconhecido ENCOLHE AS PESSOAS. Isso é grande, senhoras e senhores. A notícia, não o doente. Esse é menor que um copo.

Em seguida ele diz que chega em casa todo dia embriagado (um liliputiano alcoólatra, não lembro de o Gulliver ter visto um desses - e por "não lembro" eu quis dizer "não li porque achei chato pra caralho"), enfrenta o quarto e dorme com a solidão. Parece só uma frase de draminha romântico, mas lembre-se que no começo da música ele se refere ao mastruço imenso daquele que lhe passou a doença como "saudade", o que nos abre o precedente para crer que "solidão" pode também ser outra coisa. Pode ser, claro, só um efeito da dislexia provocada pela enfermidade, mas me parece, vou correr o risco de fazer uma afirmação baseada em nada - ao contrário de todos os outros argumentos fortemente amparados por evidências que temos nesse texto -, que "solidão" é o nome que ele dá para seu amante. "Mas por que ele usou uma palavra feminina para descrever um homem, senhor blogueiro?" Vou deixar você deduzir essa sozinho, Timmy.

Mas continuamos com a dúvida: como se chama essa doença?

Meu Deus, não!
Eu não posso enfrentar essa dor
Que se chama amor

Claro (suspiro).

Tomou conta do meu ser

Bom, ele não deve estar usando "o meu ser" para se referir a si mesmo, porque além de brega não faz sentido. Provavelmente é um outro ser vivo, como uma planta, um animal ou um Pokémon. Mas o mais importante é que acabamos de descobrir um aspecto positivo dessa doença chamada Amor: apesar de ela te arrebentar a alma e lacerar o ânus, ao menos cuida dos seus seres para eles não ficarem sem água ou comida. O que isso tem a ver com a música eu não sei, mas é bacana.

Dia-a-dia! Pouco a pouco
Já estou ficando louco
Só por causa de você!

Aqui descobrimos que além da dislexia e a da carência (ou exatamente por causa disso), o paciente passa, aos poucos, para a demência. Não sabemos até onde isso vai, se ele vai se degradando até ficar se cagando na cama enquanto o seu ser come os pudins de cocô ou se um dia melhora e a vida segue. O que sabemos, entretanto, é que a música tem um alvo muito claro ao final: a(o) Solidão.

Depois de tudo isso, acho que vale o apelo: usem camisinha. Mesmo se - por qualquer motivo que eu não compreenda - quiser colocar o seu pipiu no olho do(a) parceiro(a). Vamos nos cuidar, gente, e erradicar o Amor do Brasil ;)

domingo, 7 de julho de 2013

Essa tal nostalgia

Eu era um molecote de joelhos tortos e cabelo oleoso na Freguesia do Ó, e gastava todo o tempo em que não estava ocupado com deveres acadêmicos ou futebolísticos dentro da Brasília do meu pai ouvindo Raça Negra no toca-fitas. A graça de ser criança é que tudo é novo e maravilhoso, e eu me lembro do dia em que, depois de decorar todas as letras e aprender a cantar todos os solos de saxofone, eu pensei: "será que tem mais?"

Vou cortar um pouco a história e avisar que houve um desvio no plano inicial, mas no final eu estava com uma fita cassete que tinha num dos lados Negritude Jr. e no outro, que é o que importa nesse texto, algumas canções pinçadas do primeiro álbum do Só Pra Contrariar. Não preciso dizer que esse era o lado que eu ouvia mais (SPC >>>> Negritude), e daí em diante a trupe colorida dos irmãos Pires cantou intermináveis serenatas sob a janela do meu desenvolvimento pessoal - me lembro especialmente de uma gincana na escola que a gente tinha que cantar uma música qualquer e uma equipe humilhou improvisando uma versão de A Barata enquanto meus comparsas e eu só conseguimos pensar em interpretar o coelhinho bossa nova.

Aí eu cresci, descobri o Nirvana, aprendi a tocar violão, deixei cair os cabelos (foi opção minha, vejam só), montei uma banda, comprei uma camiseta do Led Zeppelin e fui traído, covardemente rendido por essa terrível danação chamada nostalgia. Onze anos depois de gravar a Brasil 2000 na memória do meu rádio FM eu estava no Credicard Hall - perto de onde eu só havia chegado para assistir o Oasis no estacionamento - esperando começar o show que comemora os 25 anos do grupo que me ensinou que o samba não tem fronteiras e que não adianta nada essa tal liberdade se estou na solidão pensando em você.

Havia uns sérios problemas de coerência conceitual - a plateia ficava sentada e ou eles fazem muito sucesso na Noruega ou não tem mais água oxigenada em São Paulo -, mas lá estavam os sucessos, os refrões e os mesmos rostos que estão enormes na capa do vinil que eu comprei por 2 reais no centro há uns meses. Só que mais velhos, mais sábios, mais platina tripla.

Não era um show pra me emocionar, nem um show que me inundava de ansiedade e expectativa - isso eu guardo pro Blur e pro Bruce Springsteen - porque eu não estava ali como fã, estava ali a passeio. Um passeio num trenó mágico guiado por unicórnios sobre nuvens e arco-íris pela minha infância, por um tempo mais simples em que eu podia ter um gosto musical horroroso sem que ninguém me olhasse feio por isso. Não que eu sinta falta, longe disso, mas fica dentro do meu peito sempre uma saudade.