terça-feira, 25 de dezembro de 2012

O Cachorro

Ele abriu a porta e percebeu que seu olfato não estava enganado. Voltou para o interior da casa, pegou uma pá e começou a recolher a montanha de cocô que O Cachorro gentilmente deixou em frente à entrada. Não é o tipo de coisa que o incomodava mais. No começo, quando O Filho levou O Cachorro ainda filhote para lá, balbuciando entre lágrimas e soluços que A Ex não queria o bicho em casa, aceitou adotá-lo sem pensar duas vezes. Em tempos de divórcio, é bom fazer pontos com as crianças, e além disso seria interessante ter outro organismo respirando na mesma casa e que pudesse atender pelo nome. Depois, quando O Cachorro começou a crescer demais, e finalmente ficou do tamanho de dois andares, Ele também não ligou muito. E quando precisava diariamente recolher a pilha de esterco que se acumulava sobre o seu capacho que tempos atrás dizia "Bem-vindo", também não recriminava o animal. Foi sua culpa não tê-lo ensinado o lugar certo de cagar, o que é um erro comum de donos de primeira viagem, embora poucos destes possam dizer que tiveram que cuidar de um vira-latas de seis metros de altura.

Quando o azulado do céu pendia mais para o negro que pro amarelo e Ela tocou a campainha, já não havia mais cocô nem resquício do seu cheiro. O Cachorro estava preso nos fundos, a casa estava belamente iluminada por luzes de velas, e o ar era preenchido apenas pelo aroma da comida sobre a mesa e o desconforto instigante que nasce do atrito entre as expectativas dos casais no primeiro encontro. Ela estava linda, e Ele já havia readquirido o jeito depois dos últimos encontros fracassados. Após jantarem e conversarem fluidamente, a campainha tocou mais uma vez.

O Vizinho estava furioso. A dicção ébria por trás do tráfego congestionado de cuspes e o bigode que cobria a boca tornavam impossível entender o que ele dizia, mas o tom de voz era familiar e já explicava tudo: O Cachorro escapou e fez bagunça no seu quintal. Sem graça, Ele pediu licença à encontrante e saiu para procurar seu pulguento.

Encontrou-o ainda na esquina, brincando com uma pilha de sacos de lixo. Notou, entre seus dentes, uma forma esférica e dourada, que refletia as luzes do poste. Ao pegá-la, viu que era oca, e que havia dentro um pedaço de tecido amarelado com o desenho de um mapa estilizado e uma marcação em X no que parecia ser a Colômbia ou a Venezuela.

Um tesouro escondido nos escombros de alguma desconhecida civilização pré-colombiana. Construções antigas acessíveis apenas por passagens na rocha sob os lagos azuis e limpos, mantidas em segredo durante tantos séculos. Fantasmas ancestrais, armadilhas ainda ativas, respostas para perguntas que a humanidade já desistiu de solucionar, locais jamais tocados por nenhum homem, o Eldorado, Atlântida ou qualquer outra cidade tão secreta que nem as lendas conheciam.

Ele arrumou o lixo, puxou O Cachorro pela coleira, pediu desculpas ao Vizinho, prendeu O Cachorro nos fundos - não sem antes verificar o travamento da corrente -, voltou à mesa, pediu desculpas a Ela e continuou sua história sobre como A Ex fugiu para a casa da Sogra durante duas semanas e prometeu voltar apenas se ele nunca mais conversasse com A Mocinha do RH, nem mesmo no trabalho.

Ele só queria uma vida normal.

Um comentário:

Otávio Pacheco disse...

Por uma época eu dividi o apartamento com um cão, desses grandes, não era 6 metros nem nada, mas era grande. Por sorte ele tinha um dono que o levava diariamente a despejar sua merda nas sargetas do bairro. Eu aproveitava apenas a parte boa de ter um cão em casa.
Esse conto daria um bom filme, qualquer hora você podia escrever um roteiro de curta.