quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

O tubarão vermelho

- Vejam! É um tubarão!

Gritou o Carlinhos, que àquela hora estava na parte da frente da caixa de papelão embarcação, ao avistar o baldinho vermelho virado de com a boca pra baixo.

- Um tubarão vermelho!

A angústia tomou conta da tripulação. Qualquer um com menos de sete anos sabe que os tubarões vermelhos são os piores, verdadeiros monstros do mar preparados para virar barcos e devorar navegantes.

- Só há uma coisa a fazer! - pronunciou com voz empostada o Douglas, que era sabidamente a referência intelectual no barco - Devemos oferecer uma virgem em sacrifício!

Carlinhos e Maria se entreolharam, confusos. Que diacho é uma virgem?

- Que diacho é uma virgem?
- Ora, uma virgem, uma virgem é... isso! - e Douglas demonstrou a salvação para seus problemas, com pompa e magnificência.
- Isso é uma folha de árvore - disse Maria, cética como não deveria ser com essa idade. Ela deveria estar alimentando sonhos, gritando loucuras, achando que tudo vai ficar melhor, até que a vida encontrasse a idade mais adequada pra dizê-la que não, tsc tsc, sem chance. Talvez a vida já tenha feito isso, no ano passado, quando seus pais se divorciaram.
- Uma folha de árvore é uma folha na árvore - pronunciou Douglas, sempre pomposamente, tendo o cuidado com as palavras que prenuncia um novo Allen Ginsberg, ou quem sabe só uma pessoa muito chata - Uma folha sem árvore é uma virgem, como todos deveriam saber.

Eles ficaram quietos por um segundo, porque talvez todos devessem saber mesmo. Como puderam ser tão descuidados de sair para enfrentar os faniquitos do alto-mar sem nem estudar primeiro?

- Bom, então a gente joga isso pro tubarão, certo? - fez Carlinhos, o prático.
- Bem... sim, é, isso - Douglas não conseguiu inventar nada mais interessante em cima da hora.
- Então me dá aqui.

Carlinhos tomou a folha virgem em sua mão, mirou-a contra o horizonte e atirou-a ao mar. O vento só teve o trabalho de carregar aquilo pra outro lado, lá pra calçada.

- Puta merda, agora fudeu!

Maria gritou a plenos pulmões. Ela aprendeu esses palavrões ouvindo os pais brigarem, mas não tinha permissão pra dizê-los. Bem, mas agora sua vida estava por um fio, então qual o problema? Ela teria acendido um cigarro ali, se tivesse um cigarro. E um isqueiro. Mas era o alto-mar, não tinha nada disso, só desolação e os três e o tubarão vermelho.

- O que a gente faz agora, Douglas? - Carlinhos perguntava legitimamente apavorado e segurava o amigo pelos ombros.
- Temos que remar o mais rápido que pudermos!

Agora, deixe-me dizer que é claro que esses meninos não tinham um domínio tão completo da língua portuguesa. Afinal de contas, eram apenas lobos do mar, mais acostumados ao grasnar das gaivotas que ao raspar das páginas dos livros virando. Mas você pode imaginar uns "sic" aqui e acolá.

Pegaram seus remos, meteram-nos na grama água e puseram-se a navegar para tão longe quanto possível. Infelizmente crianças são burras e, com um remando de um lado e dois de outro, o barco perdeu equilíbrio e - oh, não! - virou.

VIROU!

Fez splash! na água e teriam gritado "homem ao mar" se não fossem eles mesmos os homens. Ali estava o tubarão, e ali estava seu destino. Maria gritou "caralhoooo!" (ela nunca se sentiu tão livre, a vida é mesmo uma prisão), Douglas olhou para Carlinhos e tascou-lhe um beijo na boca. Carlinhos meio que gostou. A sociedade é uma prisão. Estavam eles no mar, lá vinha o tubarão, tam-tam-tam-tam-tam-tam. E eles sabiam que tinham chegado ao fim porque ouviram o chamado do além, e ficaram surpresos porque descobriram que deus era uma mulher e reclamava que eles estavam sujando suas roupas. "Alguém precisa reescrever os 10 mandamentos", pensou Carlinhos, mas já era tarde demais. Era hora de ir pra casa.








- Bucetaaaaa!

Maria estava se divertindo com esse negócio de morrer.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

As brigas que eu perdi

Na quinta série eu fui pra manhã, não me lembro por quê. Mas lembro por que voltei para a tarde, no começo do segundo semestre: o meu relógio biológico decidiu que 9 da manhã não era hora de estudar, era hora de mandar um barro. E isso numa fase da vida em que você precisa de autorização pra ir ao banheiro não é a melhor combinação.

O campeonato de futebol interclasses era o maior evento da escola, e naquele ano ele seria grande e brutal: entre a quinta série e o primeiro colegial, todo mundo era adversário. O time da minha sala matinal era bom, pra uma quinta série, e eu era o goleiro. Às vésperas do campeonato começar vieram me dizer que eu seria reserva, porque o Felipe ia ser o titular. O Felipe era da panela e eu não (não que eu não tenha tentado me enturmar: virei goleiro só pra ser aceito, queria mesmo era jogar na linha), e aquilo me deixou meio cabreiro porque eu era muito melhor do que ele. E quando eu mudei pra tarde, todo mundo teve certeza que eu tive um ataque de estrelismo, que não aceitei a reserva. Claro que eu preferi confirmar essa versão.

No primeiro dia à tarde, ainda que eu conhecesse quase todo mundo, as coisas mudaram. Mudou a organização social, mudaram os pelos faciais, mudaram as vozes. Fiquei seis meses fora e não pertencia mais àquele lugar. Tanto que no recreio eu fiquei no canto do pátio comendo Foffy's (lembra?) com o Fernando, que era um cara da sexta série que tinha paralisia e não era muito aceito pelas outras crianças da ilha do Senhor das Moscas.

À época das inscrições para o campeonato tinha gente suficiente na minha sala para duas equipes. Sendo a escola um regime de castas, ia ter um time com os melhores e outro com o resto. Como eu era novo, fiquei no time B, junto com os gordos e os gêmeos. O time A já tinha um goleiro, outro Felipe, e esse era meu amigo desde a primeira série e jogava muito melhor do que eu. Como eu nunca gostei desses filmes infantis em que o bando de pernas de pau (que tem o gordo, o japonês, o nerd e a menina, no nosso só faltava a menina) vira um fenômeno do esporte, tentei cavar um lugar no time principal, e consegui depois de mostrar meus talentos futebolísticos em um contra. E, dessa vez, eu ia jogar onde eu queria: na linha.

Caímos no grupo da morte, com a 7ªB, a 8ªA e o primeiro colegial. No primeiro jogo, contra a sétima, muito estudo, muita tática, um a zero pra gente, UM A ZERO PRA GENTE! É possível, vamos lá, vamos... levar uma lavada. 19x1.

O time B da sala estreou, justamente contra a quinta série da manhã, aquela que me desdenhou pelo frangueiro. Foi um massacre. 26x2 pro time da manhã, e eu só pensava que eu não teria tomado aqueles dois gols. O time B nunca mais voltou a quadra depois daquilo, perdendo os dois próximos jogos por W.O.

Mas nós persistimos, e no próximo jogo, contra os metaleiros maconheiros do primeiro colegial, tivemos uma tremenda evolução: perdemos por apenas 17x2. A partir desse momento, nossa briga não era pela classificação, nossa briga não era contra as outras turmas: éramos nós e o outro time da sala, fugindo da honra de ser o pior time do torneio.

Como eles desistiram dos outros jogos, acabaram jogando delicadamente em nossas costas o fardo de ser a defesa mais vazada do torneio. Fomos para o terceiro jogo, contra a 8ªA, e não foi fácil. Eu era muito pequeno, mesmo pra minha idade, e garotos de 14 anos são infinitamente maiores que os de 11. Num lance em que eu estava no gol (no desespero, posições mudam porque vai que um milagre acontece desse jeito) trombei com um desses seres humanos infinitamente maiores e fiquei com uma cicatriz no cotovelo que carrego até hoje. Em outro, levei uma bolada nas costas que o professor teve que paralisar o jogo pra ter certeza de que eu não ia morrer. Acabou a partida e ninguém nem sabia o placar, tamanha a surra, e o professor precisou ficar contando na ficha. Quando ele anunciou, 25x3, eu comemorei. Todos riram, acharam que a bolada nas costas tinha mexido com a minha cabeça, mas a verdade é que, pra mim, foi uma vitória: no único campeonato que nos importava, quem levou a maior goleada não foi a gente. Chupa, time B.

O campeonato seguiu, nós não, e o time da 8ªA sagrou-se campeão, com o da 7ªB em segundo lugar. No ano seguinte, num surto de lucidez, o professor dividiu em dois campeonatos, um para as quintas e sextas séries, outro para a sétima em diante. Dessa vez, chegamos à final, e perdemos por pouco (graças a um frango meu, vejam a ironia). Mas esse parágrafo não importa.

Importa que essa campanha trágica de humilhações e falta de ar ensinou-me, ainda aos 11 anos, uma das mais valiosas lições sobre a vida: o importante é que tem alguém se fudendo mais que você. E, se isso nunca me empurrou à beira do precipício para testar meus limites e evoluir à base de superação, também me permite estar muito mais à vontade com as circunstâncias da vida (na maior parte do tempo, pelo menos). Eu nunca vou ficar chorando no canto porque não escrevo como o Gabriel García Márquez e ainda vou ter um leve regozijo toda vez que ler alguém terminar uma frase com dez pontos de exclamação ou escrever "concertesa". Pequenas vitórias, é isso.

Mas não sigam meus conselhos, sonhem alto. É que toda vez que eu tento fazer isso vejo a cicatriz no cotovelo, e minha resistência à dor é meio baixa, sabe.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Anão

Apesar de ser esse adulto recluso, complexado e com óbvias dificuldades sociais, a minha versão criança era mais dada ao ar livre e à interação com outras pessoas (a parte do complexado nunca mudou). E quando você está estapeando o asfalto quente com as solas cascudas dos seus pés sem nenhuma função aparente além de gastar toda sua energia e entusiasmo pela vida em movimentos aleatórios e imbecis, você conhece pessoas, você vê coisas, você mapeia os arredores. Ser criança não é ter que ir pra escola ou ser livre pra chorar quando você perde no videogame sem ninguém te julgar (saudades), ser criança é uma missão de criação geográfica, de estabelecer o continente que é o seu bairro, quem são os personagens, qual a organização política, quais as leis e como burlá-las. Para adultos isso tudo é só um monte de casa pra invejar e gente pra odiar, mas pra crianças a sua vila é o seu mundo fantástico, e quando você vive no mesmo lugar desde pequeno, ainda que a crueza que vem com a idade jogue uma pá de bosta por cima, você ainda vê a sua vizinhança com um pouco daquele mesmo caráter mitológico de outrora.

E lá na Vila Marina (que a gente chamava de Vila Miriam), dentre todas as figuras peculiares e insólitas, ninguém se destacava mais que Luis. Ninguém chamava ele de Luis, vai. Ele era o Anão. Porque, óbvio, ele era um anão.

Vamos tirar isso da frente: na minha época de criança era mais aceitável ser babaca, e a gente ria do Anão porque, pra começar, ele era do nosso tamanho e tinha barba. Assim como a gente ria do Diego por ele ter síndrome de down e ria das duas bichinhas com seus dobermans. O que não livra nossa cara, mas certamente depõe contra quem ainda gosta dessas coisas sendo adulto hoje em dia.

O Anão não era uma lenda só por ser pequeno. Ele ganhou fama e reconhecimento porque, além de anão, era DOIDO, maluco do cacete, surtado. Para terem uma ideia, essas três situações eram muito frequentes: ele pulando o portão bêbado enquanto os cachorros ficavam latindo embaixo querendo rasgar aqueles 40 quilos nos dentes; ele tendo que ser agarrado à força pela família pra tomar banho de mangueira, porque já estava há um mês sem se lavar; ele correndo na rua com o pau duro de fora atrás de garotas, no sentido pedófilo da palavra, algumas vezes até no sentido incestuoso da palavra. Uma vez ele entrou na minha casa e meteu aquela mão que viu água semanas antes na salada e depois foi embora. Outra vez mostrou pra gente uma foto com uns trinta outros anões, tipo uma reunião do clube dos nanicos. E ia apontando pra cada um e dizendo "esse aqui morreu, essa aqui morreu, esse aqui foi morar em Ribeirão Preto, esse aqui morreu". Lembro de ter pensado que anões morrem rápido.

Nem todos, porque o Luis viveu um monte, até que hoje ele não viveu mais. Morreu no meio dessa onda horrorosa de calor, o que talvez seja uma maneira poética de se adaptar ao lugar onde ele vai morar agora, se vocês acreditam nessas coisas.

Então eu lembrei que uma vez a gente jogava bola na rua e eu achei cinco reais no chão. Foi mágico, foi maravilhoso. A gente desconfiou que era do Anão, mas agora era meu, sou o legítimo dono deste tesouro de piratas. Mais tarde, quando o corsário de humildes proporções passou por ali de volta, meu irmão sugeriu, ainda não acostumado à prática do sarcasmo: "perdeu alguma coisa, Anão?". Reduzindo a história, tive que devolver o dinheiro pra ele. Como recompensa por termos encontrado as suas próximas cinco pingas, ele nos presenteou, numa atitude muito bonita, com lápis e borrachas vagabundas. Deu mais pro meu irmão que pra mim, e eu pensei "que anão filho da puta". Eu não era uma boa pessoa quando criança.

Julgamentos morais à parte, hoje se foi um personagem importante da minha Nárnia. Se a vida já tinha tirado grande parte da magia que eu via no lugar, hoje a morte tirou outra grande parte. Vai em paz, Luis. Até a próxima.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Falar do tempo

Eu não sou um cara viajado, ao menos não dentro do planeta Terra, e mesmo nos lugares em que estive não passei grandes temporadas. Sendo assim posso afirmar, com todas as letras (embora eu não precise de todas, não preciso do k, nem do y, nem do z) que eu nunca passei tanto calor nessa bosta dessa vida. Eu sei que São Paulo não é assim o Rio ou Cuiabá ou Manaus, mas puta que me pariu, não tô dando conta.

E não uso isso apenas como expressão: já considerei o suicídio como fuga desse reinado de satanás ao menos três vezes. Hoje. Porque se é pra viver suando feito uma panela de pressão, com a roupa molhada, a pele vermelha e chegar ao ponto de preferir ficar no trabalho a ir pra casa porque lá tem ar condicionado, eu prefiro não. Abro mão, adeus.

Não é só que a temperatura subiu um pouquinho, é possível ver outros sinais que indicam alterações drásticas na maneira como nada a vida na Terra. Por exemplo, o fato de que à noite faz tanto calor quanto durante o dia é óbvio indício de que não só o segundo sol chegou para realinhar as órbitas dos planetas como ele é negro e joga seus tentáculos de nanquim sobre nossas cabeças para nos fazer pensar que é noite e o sol - o único que conhecemos - está do outro lado do globo espalhando caos e miséria sobre os habitantes de um hemisfério coirmão. Os insetos não só cresceram em quantidade como em tamanho. Já viram os tamanhos dessas baratas? Outro dia eu calcei uma achando que era meu chinelo. Tem pernilongo que entra no meu quarto de madrugada e eu percebo sua presença não pelo bzzz característico (já que eu uso um protetor no ouvido), mas pelo vento que se choca contra o meu rosto, provocado pelo bater das asas desse monstro voador. E eu posso estar enganado, mas tenho a impressão de que outro dia vi, durante uma madrugada de insônia (quem consegue dormir?) a silhueta de uma iguana gigante recortada pelo luar.

São Paulo sempre foi um deserto de gentileza, pontilhado por cactos que são prédios com todos os apartamentos esgotados já na planta, onde sonhos são enterrados na areia e corações rolam e pingam no chão carregados pelo vento. Mas estava bom quando era só na metáfora: isso aí, esse inferno, esse sol a um palmo das nossas cabeças, isso aí num dá não, vocês me desculpem. Vou corrigir meu déficit de viagens do primeiro parágrafo, juntar meus trapos e meus videogames e pegar o primeiro trem pra Groenlândia. Porque só na minha cabeça a melhor maneira de combater esse calor é viver num frio muito pior que tudo que eu já vi na vida.

O que me segura aqui entre vocês é a tubaína que está no congelador, esperando sua hora de estalar na minha boca. Ela é o meu oásis. Mas o dia que faltar ela no mercado, aí é adeus mesmo, pergunte à minha mãe se no céu tem ventilador, e morri.

Mas se me mandarem pro inferno, lascou.