quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Falar mal de gente

Essa semana, você deve saber, a internet entrou em frenesi pela chegada ao Brasil do Lulu, um aplicativo em que as mulheres dão notas para os homens, especialmente naqueles aspectos que eu não posso falar aqui porque esse é um blog de família. Eu não ia (e não vou) escrever sobre ele porque, apesar da tormenta ideológica, das discussões infindáveis e das reversões éticas (eles criam meu perfil sem eu autorizar mas só deletam se eu pedir), eu não tô nem aí pra esse negócio. Que use quem quiser usar, que se revolte quem se sentir revoltado, que processe quem se sentir ofendido. Eu caguei.

Mas fui caminhando um pouco mais pelo assunto e acabei caindo na discussão mais velha dos últimos 15 anos: a da eterna tentativa de simulação virtual de experiências analógicas. Eu não sei, honestamente, se o Lulu ou qualquer outro aplicativo da espécie (com certeza existem outros) tenta substituir ou incentiva (ou nada disso), mas há poucas coisas mais divertidas que a sua contraparte no "mundo real": juntar pessoas > ingerir coisas > falar mal de gente.

Oh, que horror, devemos cuidar apenas das nossas vidas, todos somos seres humanos e merecemos respeito, etc. Você está correta, madre. O respeito mútuo e a renúncia a julgamentos rasteiros e malignos são elementos-chave para a manutenção da boa convivência em sociedade. E é exatamente por isso que o ritual descrito no fim do parágrafo anterior é tão legal.

Ora, enquanto somos um grupo de pessoas recolhidas a um espaço com a finalidade de sermos escrotos com nossos irmãos de espécie - não só os do sexo oposto, não só sobre vucovuco - somos também foras-da-lei, abnegados. Somos a resistência (a quê, exatamente, eu não sei). Quando estamos reunidos e resolvemos abertamente publicar em voz alta um comentário malicioso sobre alguém, estamos arriscando nossa própria reputação social ao compartilhar a maldade que mantemos escondida na maior parte do tempo com outras pessoas que, convenhamos, não sabemos se vão respeitar a santidade do evento e guardar essa informação num baú (você sabe que você não só vai contar tudo que ouviu como ainda vai falar mal de quem estava na mesa). É perigoso, é transgressor, e é por isso que é do caralho.

Infelizmente também é coisa de babaca, mas faz parte. Todos temos nossos defeitos, mas é mais legal falar dos defeitos dos outros (tirando esse blog, que é quase um templo erguido em celebração aos meus destrambelhos). E é aí que está o problema com o Lulu, com a sua contraparte masculina (que eu sei lá o nome) e com qualquer instrumento virtual de aglutinação de opiniões alheias: mesmo que você esteja presente anonimamente, ainda é algo aberto, facilmente acessível e, o pior de tudo, registra tudo que foi dito para os confins da eternidade. São ferramentas, não são eventos. Não dá pra ver o riso ao mesmo tempo livre, cruel e culpado dos que estão ao redor quando você conta algo que, sob qualquer outro contexto, é mó mancada.

E, por fim, no clube dos babacas você sabe que está sendo cuzão e que fora dali esse tipo de comportamento não é permitido. Quando você faz via um sisteminha, sob a sombra do anonimato, você nem sabe que está sendo cuzão. No primeiro caso, você acaba não só conhecendo mais sobre um monte de gente, acaba conhecendo mais sobre você. No segundo caso, a autocrítica passa longe, é só maldade gratuita. Você vai pro inferno sem nem saber o motivo. Não que esteja errado, mas falta sofisticação.

Ou talvez nada disso seja vantagem e eu só seja um velho avesso à tecnologia. Podia ter um aplicativo pra isso, né? Ia chamar "Gagá".

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Toda vez que eu corto o cabelo eu me sinto naquela cena da novela que a Carolina Internet tinha leucemia

Nos últimos três anos, cortar cabelo tem sido um tormento constante na minha vida. Eu sei, parece loucura, tem tantos cabeleireiros em São Paulo, mas aqui está algo que você não sabe sobre mim: eu sou careca. É verdade. Eu acho que nunca disse isso no blog (nunca, não mesmo, jamais), mas taí, um novo fato. E esse novo fato faz o velho fato parecer mais loucura ainda: como pode alguém quase sem cabelo ter dificuldades para cortá-lo?

Pra mim, a característica mais importante dos serumanos é a sua adaptabilidade (falei disso aqui, lembra?). Infelizmente o que vale pra todo mundo não vale pra mim, então prefiro a repetição, a rotina, as desnovidades. Durante boa parte (talvez a metade) dos anos em que vivi na Freguesia do Ó eu cortava o cabelo só no Jaimilton, até chegar naquele ponto em que eu só chegava, sentava na cadeira, ele perguntava do meu pai, eu perguntava do pessoal lá e pronto, cabou. Quando me mudei para uma terra distante e desolada, tive que procurar novos lugares pra me descabelar, e aí começaram as dificuldades.

Primeiro porque eu sei lá como é que eu queria que meu cabelo fosse cortado. É pra passar a 3? a 4? a 2? Muda a máquina em cima e dos lados? Sei lá. Segundo porque todos os outros lugares cobram muito mais que o Jaimilton, e eu acho desaforo pagar 20 reais pra cortar 20 fios de cabelo. E terceiro porque eu não me sinto bem nesses lugares assim.

Assim: lugares que cortam cabelo em bairros que não são da periferia são, em geral, extravagantes, modernos, estilosos. Tem cheiros estranhos e são limpos. Eu descobri nesse tempo que esse tipo de estabelecimento não é pra mim. Não que eu seja machão e bronco e coisa do tipo, mas depois de passar tanto tempo frequentando um lugar decorado por revistas de mulher pelada dos anos 90 e em que as conversas dificilmente saíam da trindade futebol-jogodobicho-minhamulherfaloupraeuchegarmaistardeseráqueelaestámetraindohaha eu simplesmente não consegui me adaptar a outras realidades. E mesmo quando encontrava locais mais apropriados aos meus gostos primitivos, como o Seu Joaquim, o barbeiro português cego de seis mil anos que tem um salão do lado do cemitério e provavelmente ao fim do dia quando fecha as portas volta pra sua tumba, faltava algo: ou o preço não era bom, ou demorava muito, ou era muito longe, ou o cara ao invés de deslizar a máquina pela minha cabeça como um jet-ski sobre um calmo lençol de água preferia fazê-la galopar como um avião aterrissando. Eu sou careca mas sou gente, isso aí machuca, poxa.

Ontem, por exemplo, sob a chuva desagradável que despencava, resolvi ir num que fica entre o trabalho e o metrô. Custa vintão (ponto negativo), o cara me disse na entrada, mas dane-se, vamo lá. Enquanto esperava e acompanhava na TV um jogo entre dois times que estavam em longas sequências negativas no campeonato português (ponto positivo), ele cortava o cabelo de um cara e não parava de falar sobre peixes. Falou sobre os tipos de peixe, sobre dicas de pesca, sobre o melhor lugar pra comprar (no Ceagesp, não na feira), sobre como conservar o peixe. Quando deu uma brecha de alguns segundos na conversa, o suficiente para que o silêncio flutuante fosse constrangedor, ele mandou: "sabe que peixe é bom para..."

Me preocupou, não nego, porque eu sou muito limitado e não acredito que um homem (mulher tudo bem) consiga ser bom em mais de uma coisa. E um cara que sabe tanto assim sobre peixes não tem espaço na sua agenda de talentos para saber cortar um cabelo - como comprovou o talho que ele deixou no meu pescoço depois, o que me fez ficar com inveja dos peixes (não porque ele talvez saiba cortá-los melhor, mas porque eles ao menos estão mortos). Então você pode calcular que eu não sou mesmo bom no meu trabalho, e isso só acontecerá quando minha profissão for algo tipo biógrafo do Raça Negra. Até lá, vamos enganando os empresários.

Depois que eu sentei na cadeira, justiça seja feita, o assunto com o cliente anterior, já de saída, mudou para azeites. Claro que teve uma transição, com ele falando quais peixes ficam bons com azeite de dendê, mas tudo bem.

A verdade é que, ao final de tudo, ainda permanece meu drama. Você pode até achar fútil, mas é meio dramático, porque é como se eu tivesse um paciente em coma que eu sei que vai morrer, mas como não estou preparado para desligar os aparelhos, fico tentando fazê-lo jogar D&D comigo. Essa metáfora só fez parecer que eu não tenho amigos - o que é verdade - mas não era o objetivo.

"Por que você não corta o próprio cabelo, seu pamonhão?". Ah, eu ouvi você balbuciando essa cinco parágrafos atrás. Resposta: porque não. Sendo eu assim tão limitado e só capaz de fazer uma coisa direito, provavelmente terminaria com um buraco no meio da sobrancelha ou a orelha igual a do Holyfield. Então o mais seguro é deixar cada macaco no seu galho: os profissionais cortam meu cabelo, e eu investigo mais sobre aquelas apresentações históricas no Bar do Coalhada, o Cavern Club brasileiro.

domingo, 24 de novembro de 2013

Timidez

Meses atrás eu comprei o Manual de Sobrevivência dos Tímidos, um guia-chacota sobre a timidez e como se portar num mundo que tem a comunicação como força gravitacional. Eu sou tímido de carteirinha, de cabeça baixa e voz pra dentro, de pouca fala e pouco riso. Nas minhas andanças por esse mundão de meu deus (leia-se Freguesia do Ó, Pinheiros, Ipiranga e av. Paulista), conheci poucos cuja introspecção rivalizava com a minha. Assim eu pensava.

Porque um fenômeno curioso desdobrou-se diante dos meus olhos cada vez que eu mostrava o livro a alguém: boa parte das vezes, a pessoa dizia que eu nem era tímido.

Por alguns segundos me batia uma sensação desagradável, como se eu estivesse vivendo uma mentira. Será que pensei o tempo todo ser recolhido em meus receios quando na verdade desfilo de samba no pé e sorriso no rosto pela passarela da extroversão? Alguns segundos depois, vinha a segunda onda, a da mureta: talvez eu não seja assim tão tímido quanto pensei, talvez até seja saidinho um pouco.

Mas então eu pensava que todos que me diziam isso eram pessoas com as quais eu estava habituado a conviver há anos, muitas vezes até num âmbito doméstico. Ora, falar com gente assim não é ser expansivo, é ser normal (o que eu também não sou, mas por outros motivos).

Também é de se observar que timidez não tem só a ver com falar. Separei para vocês algumas características definidoras importantes, vejam no quadro negro:

Iniciativa: para qualquer interação social acontecer, alguém precisa dar o primeiro passo. E dar o primeiro passo significa sempre dizer "foda-se" para a mais popular questão entre jovens na puberdade (ou homens de qualquer idade): quem perguntou? Pessoas extrovertidas estão pouco se cagando para essas coisas, eles estão desprendidos da expectativa boba de terceiros. Mas aos tímidos, vixe, deus nos livre invadir o espaço de alguém convocando a atenção dessa pessoa para algo que, se ela tivesse mesmo interesse, teria perguntado primeiro. Socorro.

Contra-ataque: mas digamos que a outra pessoa tenha mesmo começado o assunto, e por algum motivo seja esperada de você uma resposta. Quando é só uma pergunta direta ("você é casado?", "pra que time você torce?") é tranquilo. Mas e quando é uma coisa mais etérea, subjetiva, ou quando não é exatamente uma pergunta mas você precisa preencher o espaço que se alarga e grita após o ponto final da outra parte ("essa fila não anda.")? Puta merda, puta merda. Responder o que? Um "é foda"? Coisa mais sem graça, a pessoa vai achar que você não quer falar com ela (o que obviamente é verdade, mas lembre-se que "foda-se" só está no nosso vocabulário quando está entre aspas). Se responder com uma piadinha também é uma merda, porque 1) a pessoa pode estar lá putona, não querendo saber de gracinha; 2) ninguém entende as minhas piadas. Aí existe sempre a saída da resposta fácil padrão ("deviam abrir mais caixas"), mas eu particularmente fico um pouco incomodado com esse tipo de coisa porque a vida é tão maravilhosa e as possibilidades são tantas e a gente fica usando as mesmas respostas formuláicas pra tudo.

Mas elas funcionam, né, fazer o que.

Expressão tridimensional: você ocupa lugar no espaço, e só você ocupa esse lugar. Ele é seu, de mais ninguém! Infelizmente, isso traz certas responsabilidades. Como latifundiário desses metros cúbicos limitados pela sua pele, você precisa fazer valer a pena. Mas aí sua postura é uma bosta, seu zíper tá aberto, você anda de um jeito engraçado e vira a cabeça sempre uma fração de segundo depois de todo o resto do corpo, o que te deixa com aquele ar de ciborgue que acha que aprendeu todos os segredos humanos menos a amar mas na verdade não aprendeu quase nada dos segredos humanos. Você é desastrado e o ar nunca se encaixa bem ao seu redor, então a roupa nunca veste direito e a barba tem toda uma miríade de densidades pelográficas distintas espalhadas tão aleatoriamente que parece que foi de propósito. E você morre de vergonha por isso, claro, mas também não é capaz de apontar exatamente o que está errado, o que é sempre um terror (e nos leva ao próximo tópico).

Neura: e se eu estiver falando alto demais? E se tiver um mato no meu dente? E se o sorriso que eu dei não se configurou exatamente como um sorriso e a pessoa achou que eu tava pedindo silenciosamente pra ela calar a boca? E se usar esse :P não for o mais adequado para esse email enviado pra empresa inteira? E se eu roncar? E se minha cueca estiver com aquela aura marrom? E se eu num momento de desatenção deixar escapar que acho Muse uma das maiores atrocidades que já aconteceram aos meus ouvidos e não conseguir fingir talvez colocando no meio de um texto pra parecer que é um exemplo genérico e não a minha opinião de verdade e que eu preferia que um falcão desse um rasante na minha cara, arrancasse meu olho e logo atrás viesse um pombo e cagasse dentro do buraco que ficou a ter que ouvir uma música deles? E se eu for espirrar e acabar peidando junto? E se


Ora, eu sou tímido porque sou e pronto. Mas daí parece que "tímido" (como "nerd", mas já tratamos desse assunto anteriormente), virou uma insígnia que o cara aleatoriamente se atribui, porque deve ser legal por algum motivo. Estou frequentemente vendo gente se dizendo tímida sem passar nem perto disso. Outro dia mesmo vi uma autodefinição dessa da Britney Spears. Eu teria vergonha de chegar perto da Madonna; ela deu-lhe uma linguada. Ao vivo. Em rede nacional. Usando quatro centímetros quadrados de roupa. Nossa, como ela é introvertida.

A questão é que vivemos - kibarei - em uma expansivocracia, e num mundo em que as pessoas não estão em busca de respostas, estão em busca de desculpas. Eu tive professores na faculdade (sou formado em publicidade, não que me orgulhe) que diziam que naquela carreira não tinha lugar para timidez. Em primeiro lugar, tiremos isso da frente: tem lugar sim, para de ser babaca (embora isso talvez seja pré-requisito, sei lá). Mas claro que nada é mais fácil pra quem é reservado e menos talentoso no trato com os aspectos humanos da vida, então é meio comum por na timidez a culpa por certos insucessos nessa longa caminhada rumo à morte amiga. Então tem sujeito dizendo que é tímido pra justificar o mimimi; ora, deixa disso, campeão. Se você usa a minha desculpa, o que me resta?

É sério: eu conquistei essa ressalva para o fracasso com muito esforço, suor e gaguejadas. Vá caçar as suas próprias desculpas.

Ou tente melhorar, sei lá.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Mais jabá

Mais jabá? Mais jabá.

Na próxima quarta-feira, 20 de novembro, meus correligionários e eu tocaremos na Praça da República, em São Paulo (não na praça exatamente). É feriado, dia da consciência negra (como se os pobres afrodescendentes já não tivessem sofrido o bastante), e dá pra chegar, beber, ouvir nossos alaridos e ir me atualizando sobre São Paulo x Ponte Preta, porque eu estarei um pouco ocupado diminuindo a expectativa de vida dos incautos que comparecerem. Só bons motivos, olha só.

Tem um evento no Facebook: https://www.facebook.com/events/217860498394611

E um flyer horrível:


Eu se fosse você, ia. Na verdade não ia, não, mas se você fosse eu, iria. Porque aí você teria que tocar. Não sei como isso pode ser um fator de convencimento pra alguém, mas também não sei como tem gente que gosta desse blog, e aqui está você.

Melhor eu parar. Até lá, então.

domingo, 10 de novembro de 2013

A gente se veste do mesmo jeito porque se sente do mesmo jeito

http://www.reverbcity.com/produto/Camisetas/T-shirts/Blur

Já que não sou de colocar fotos minhas no blog, cabe dizer, antes de ir direto ao assunto, que eu me visto assim: camiseta, calça jeans, tênis. A camiseta pode ser de time (difícil), de banda (de vez em quando) ou lisa (o mais normal). Então se um dia você encontrar na rua um cara de camiseta branca, jeans e tênis da Adidas, já sabe: provavelmente não sou eu, mas pode ser.

Passei o último sábado numa epopeia particular para ver o Blur, uma das poucas coisas que faltavam na minha lista de shows obrigatórios pra assistir antes de morrer (vem, Neil Young). Aparei a barba, tomei banho, peguei meu tênis da Adidas mais confortável e fui na camiseta que estava separada desde o começo da semana: uma verde com caixinhas de leite que caricaturizam os integrantes da banda. Ela estava lá havia tanto tempo aguardando esse dia, e esse dia chegou. Não era só uma realização minha, era da camiseta também.

E aí na fila pra entrar eu vejo um cara com a camiseta igual. Bem, era de se esperar, é a grande banda do festival, vai ter mesmo um ou outro usando essa aí. Passando a catraca, vejo mais uma moça. E depois mais um, e mais um e mais outra. Faço uma volta completa em torno do meu próprio eixo e avisto quatro. Não, pera, tem mais um no fundo.

Era uma legião de pessoas com a camiseta verde do leitinho (sendo mais correto, alguns estavam de vermelho, mas com a mesma estampa). Lembrei de End of a Century: a gente se veste do mesmo jeito porque se sente do mesmo jeito. Não que eu ligue pra qualquer aspecto do mundo fashion, mas quando você tem uma camiseta diferente e ela acaba sendo igual, isso meio que te rebaixa como indivíduo e te joga num comboio cheio de gente sem cara.

(Camiseta de time é outra história, gente, é diferente)

Entretanto, foi um grande, grande show. Que banda, amiguinhos. Era pra ser uma realização minha e da camiseta, acabou sendo só minha. Mas, já que a cidade da felicidade era pequena demais para nós dois, a camiseta que se foda.

Se não afirmo minha individualidade pela vestimenta, afirmo pelo egoísmo.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Nelson

Era um fim de tarde de domingo típico, em que eu voltava pra casa depois de passar o fim de semana a mil (sendo paparicado na casa dos meus pais). Cheguei no portão e fui recebido pelos três cachorros, naquele fervor habitual. E enquanto eu habilmente destrancava o cadeado, com todo cuidado e firmeza pra não deixar a chave cair e eu ficar panguando do lado de fora (já aconteceu), ouvi um quarto latido, mais grave, mais rouco. Que diabo é isso. Abri o portão, fechei o portão, abri a porta de casa e tá lá dentro um cocker gordo e marrom de grandes olheiras (e orelhas, claro) que eu nunca tinha visto na vida.

Sei lá quem é esse cara, mas e aí véi, beleza, passa a mão na cabeça e tal. Minutos depois recebo mensagem de uma amiga (que não vou nomear porque ela ainda vai se tornar vilã até o final do texto) dizendo "já conheceu o Nelson?". Ah, então esse é o Nelson. Nelsão.

Ele foi encontrado amarrado num poste, debaixo de chuva. Alguém viu, socorreu e hospedou num pet shop. Outro alguém soube e resolveu levar para um lugar mais aconchegante, até achar alguém pra adotar. Esse lugar era lá em casa (esse pet shop devia se chamar Gomorra, porque imagina).

Nelsão é uma figura. Ele faz barulho igual o primeiro modelo do PlayStation 3, aquele grandão. Ele tem um bafo desgraçado. Ele peida. Ele fica parado do seu lado te olhando por horas, se deixar. Ele tem uma pirocona que só não me deixava apavorado porque eu sabia que ele não conseguia subir na minha cama. Ele foi adotado por outro casal, e a vida ficou triste, e depois ele voltou pra cá, e a vida ficou feliz de novo. Era meu companheirão, ainda que o fato dele ficar parado te olhando por horas seja mais digno de preocupação que qualquer outra coisa.

Então um dia eu estava resolvendo burocracias em recantos engravatados de São Paulo e, na plataforma do trem, recebo outra mensagem, da mesma pessoa, dizendo "achei os donos do Nelson".

Digressão: a gente notou, pelos hábitos e pela educação, que ele foi bem criado. Digo, ele peidava e tal, mas minha família toda faz isso. Então o evento dele estar amarrado no poste deve ter sido um acidente. Decidiu-se procurar os donos antigos. Voltemos.

"Achei os donos do Nelson". Assim, plau, na fuça. E vou dizer que esse não foi dos dias menos ridículos que eu já vivi: embora eu compreendesse a força desse momento, de como era legal o Nelsão voltar para o seu lar, de como era incrível ter-se encontrado uma agulha nesse palheiro interminável, a frustração me escorria pelos olhos. E assim o fez durante o dia todo, mas por sorte eu consegui camuflar com a rinite (lágrimas e catarro / molham o vidro da janela / mas ninguém me vê).

Os donos do Nelson (que na verdade se chama Boris, hunf) buscá-lo-iam naquela mesma noite. Mas naquela mesma noite eu já estava compromissado com os meus tolos sonhos de sucesso e relevância, de maneira que só fui pra casa pegar minha guitarra, meus pedais e correr pro estúdio. Como humilhação nunca é o bastante, ainda deu tempo de pegar o violão e me despedir do meu amigão com uma canção que eu havia composto em tempos anteriores e se chama "Eu vou deixar vocês pra trás" (que eu copiei de um lado B do Oasis, conta pra ninguém). Não consegui, fui engolido pela emoção.

Que fique bem claro que embora eu costume exagerar e incrementar adereços patéticos às minhas histórias para fins cômicos, dessa vez aconteceu exatamente como descrito, por mais vergonha que eu tenha de admitir.

Então eu fiz o caminho inverso daquele do primeiro dia: passei-lhe a mão na cabeça, atravessei a porta, depois o portão, tranquei com o cadeado. Quando voltei, Nelsão não estava mais lá. Se foi pra sempre o meu amigo.

Como eu sou muito bom com datas (e confesso que já tentei escrever um post sobre isso, mas ele conseguiu o inacreditável feito de ser ainda menos interessante que a média publicada), sei que hoje faz um ano da ida do Nelsão, da volta do Boris. Da última vez que soube, uma ou duas semanas atrás, ele estava mal: estava internado, problemas renais. Não sei qual a situação atual e, na moral, também não quero saber. Deixa eu achar que ele tá peidando e encarando por aí, como sempre. Aceitações racionais não funcionaram pra mim um ano atrás, não vão funcionar agora.

Meu amigo vai viver pra sempre e pronto.

Sei que essa foto não combina com a frase final do texto, mas era essa ou uma que somada ao parágrafo sobre a piroca dele poderia levantar suspeitas que eu não tô com a moral assim tão alta pra combater.