quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Anão

Apesar de ser esse adulto recluso, complexado e com óbvias dificuldades sociais, a minha versão criança era mais dada ao ar livre e à interação com outras pessoas (a parte do complexado nunca mudou). E quando você está estapeando o asfalto quente com as solas cascudas dos seus pés sem nenhuma função aparente além de gastar toda sua energia e entusiasmo pela vida em movimentos aleatórios e imbecis, você conhece pessoas, você vê coisas, você mapeia os arredores. Ser criança não é ter que ir pra escola ou ser livre pra chorar quando você perde no videogame sem ninguém te julgar (saudades), ser criança é uma missão de criação geográfica, de estabelecer o continente que é o seu bairro, quem são os personagens, qual a organização política, quais as leis e como burlá-las. Para adultos isso tudo é só um monte de casa pra invejar e gente pra odiar, mas pra crianças a sua vila é o seu mundo fantástico, e quando você vive no mesmo lugar desde pequeno, ainda que a crueza que vem com a idade jogue uma pá de bosta por cima, você ainda vê a sua vizinhança com um pouco daquele mesmo caráter mitológico de outrora.

E lá na Vila Marina (que a gente chamava de Vila Miriam), dentre todas as figuras peculiares e insólitas, ninguém se destacava mais que Luis. Ninguém chamava ele de Luis, vai. Ele era o Anão. Porque, óbvio, ele era um anão.

Vamos tirar isso da frente: na minha época de criança era mais aceitável ser babaca, e a gente ria do Anão porque, pra começar, ele era do nosso tamanho e tinha barba. Assim como a gente ria do Diego por ele ter síndrome de down e ria das duas bichinhas com seus dobermans. O que não livra nossa cara, mas certamente depõe contra quem ainda gosta dessas coisas sendo adulto hoje em dia.

O Anão não era uma lenda só por ser pequeno. Ele ganhou fama e reconhecimento porque, além de anão, era DOIDO, maluco do cacete, surtado. Para terem uma ideia, essas três situações eram muito frequentes: ele pulando o portão bêbado enquanto os cachorros ficavam latindo embaixo querendo rasgar aqueles 40 quilos nos dentes; ele tendo que ser agarrado à força pela família pra tomar banho de mangueira, porque já estava há um mês sem se lavar; ele correndo na rua com o pau duro de fora atrás de garotas, no sentido pedófilo da palavra, algumas vezes até no sentido incestuoso da palavra. Uma vez ele entrou na minha casa e meteu aquela mão que viu água semanas antes na salada e depois foi embora. Outra vez mostrou pra gente uma foto com uns trinta outros anões, tipo uma reunião do clube dos nanicos. E ia apontando pra cada um e dizendo "esse aqui morreu, essa aqui morreu, esse aqui foi morar em Ribeirão Preto, esse aqui morreu". Lembro de ter pensado que anões morrem rápido.

Nem todos, porque o Luis viveu um monte, até que hoje ele não viveu mais. Morreu no meio dessa onda horrorosa de calor, o que talvez seja uma maneira poética de se adaptar ao lugar onde ele vai morar agora, se vocês acreditam nessas coisas.

Então eu lembrei que uma vez a gente jogava bola na rua e eu achei cinco reais no chão. Foi mágico, foi maravilhoso. A gente desconfiou que era do Anão, mas agora era meu, sou o legítimo dono deste tesouro de piratas. Mais tarde, quando o corsário de humildes proporções passou por ali de volta, meu irmão sugeriu, ainda não acostumado à prática do sarcasmo: "perdeu alguma coisa, Anão?". Reduzindo a história, tive que devolver o dinheiro pra ele. Como recompensa por termos encontrado as suas próximas cinco pingas, ele nos presenteou, numa atitude muito bonita, com lápis e borrachas vagabundas. Deu mais pro meu irmão que pra mim, e eu pensei "que anão filho da puta". Eu não era uma boa pessoa quando criança.

Julgamentos morais à parte, hoje se foi um personagem importante da minha Nárnia. Se a vida já tinha tirado grande parte da magia que eu via no lugar, hoje a morte tirou outra grande parte. Vai em paz, Luis. Até a próxima.

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