Nos últimos três anos, cortar cabelo tem sido um tormento constante na minha vida. Eu sei, parece loucura, tem tantos cabeleireiros em São Paulo, mas aqui está algo que você não sabe sobre mim: eu sou careca. É verdade. Eu acho que nunca disse isso no blog (nunca, não mesmo, jamais), mas taí, um novo fato. E esse novo fato faz o velho fato parecer mais loucura ainda: como pode alguém quase sem cabelo ter dificuldades para cortá-lo?
Pra mim, a característica mais importante dos serumanos é a sua adaptabilidade (falei disso aqui, lembra?). Infelizmente o que vale pra todo mundo não vale pra mim, então prefiro a repetição, a rotina, as desnovidades. Durante boa parte (talvez a metade) dos anos em que vivi na Freguesia do Ó eu cortava o cabelo só no Jaimilton, até chegar naquele ponto em que eu só chegava, sentava na cadeira, ele perguntava do meu pai, eu perguntava do pessoal lá e pronto, cabou. Quando me mudei para uma terra distante e desolada, tive que procurar novos lugares pra me descabelar, e aí começaram as dificuldades.
Primeiro porque eu sei lá como é que eu queria que meu cabelo fosse cortado. É pra passar a 3? a 4? a 2? Muda a máquina em cima e dos lados? Sei lá. Segundo porque todos os outros lugares cobram muito mais que o Jaimilton, e eu acho desaforo pagar 20 reais pra cortar 20 fios de cabelo. E terceiro porque eu não me sinto bem nesses lugares assim.
Assim: lugares que cortam cabelo em bairros que não são da periferia são, em geral, extravagantes, modernos, estilosos. Tem cheiros estranhos e são limpos. Eu descobri nesse tempo que esse tipo de estabelecimento não é pra mim. Não que eu seja machão e bronco e coisa do tipo, mas depois de passar tanto tempo frequentando um lugar decorado por revistas de mulher pelada dos anos 90 e em que as conversas dificilmente saíam da trindade futebol-jogodobicho-minhamulherfaloupraeuchegarmaistardeseráqueelaestámetraindohaha eu simplesmente não consegui me adaptar a outras realidades. E mesmo quando encontrava locais mais apropriados aos meus gostos primitivos, como o Seu Joaquim, o barbeiro português cego de seis mil anos que tem um salão do lado do cemitério e provavelmente ao fim do dia quando fecha as portas volta pra sua tumba, faltava algo: ou o preço não era bom, ou demorava muito, ou era muito longe, ou o cara ao invés de deslizar a máquina pela minha cabeça como um jet-ski sobre um calmo lençol de água preferia fazê-la galopar como um avião aterrissando. Eu sou careca mas sou gente, isso aí machuca, poxa.
Ontem, por exemplo, sob a chuva desagradável que despencava, resolvi ir num que fica entre o trabalho e o metrô. Custa vintão (ponto negativo), o cara me disse na entrada, mas dane-se, vamo lá. Enquanto esperava e acompanhava na TV um jogo entre dois times que estavam em longas sequências negativas no campeonato português (ponto positivo), ele cortava o cabelo de um cara e não parava de falar sobre peixes. Falou sobre os tipos de peixe, sobre dicas de pesca, sobre o melhor lugar pra comprar (no Ceagesp, não na feira), sobre como conservar o peixe. Quando deu uma brecha de alguns segundos na conversa, o suficiente para que o silêncio flutuante fosse constrangedor, ele mandou: "sabe que peixe é bom para..."
Me preocupou, não nego, porque eu sou muito limitado e não acredito que um homem (mulher tudo bem) consiga ser bom em mais de uma coisa. E um cara que sabe tanto assim sobre peixes não tem espaço na sua agenda de talentos para saber cortar um cabelo - como comprovou o talho que ele deixou no meu pescoço depois, o que me fez ficar com inveja dos peixes (não porque ele talvez saiba cortá-los melhor, mas porque eles ao menos estão mortos). Então você pode calcular que eu não sou mesmo bom no meu trabalho, e isso só acontecerá quando minha profissão for algo tipo biógrafo do Raça Negra. Até lá, vamos enganando os empresários.
Depois que eu sentei na cadeira, justiça seja feita, o assunto com o cliente anterior, já de saída, mudou para azeites. Claro que teve uma transição, com ele falando quais peixes ficam bons com azeite de dendê, mas tudo bem.
A verdade é que, ao final de tudo, ainda permanece meu drama. Você pode até achar fútil, mas é meio dramático, porque é como se eu tivesse um paciente em coma que eu sei que vai morrer, mas como não estou preparado para desligar os aparelhos, fico tentando fazê-lo jogar D&D comigo. Essa metáfora só fez parecer que eu não tenho amigos - o que é verdade - mas não era o objetivo.
"Por que você não corta o próprio cabelo, seu pamonhão?". Ah, eu ouvi você balbuciando essa cinco parágrafos atrás. Resposta: porque não. Sendo eu assim tão limitado e só capaz de fazer uma coisa direito, provavelmente terminaria com um buraco no meio da sobrancelha ou a orelha igual a do Holyfield. Então o mais seguro é deixar cada macaco no seu galho: os profissionais cortam meu cabelo, e eu investigo mais sobre aquelas apresentações históricas no Bar do Coalhada, o Cavern Club brasileiro.
terça-feira, 26 de novembro de 2013
Toda vez que eu corto o cabelo eu me sinto naquela cena da novela que a Carolina Internet tinha leucemia
Postado por Thiago Padula às 11:46
Marcadores: I hate myself and I wanna die, Inutilidades
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2 comentários:
Ahahahha imgina comigo, a mulher que corta meu cabelo vai em casa... não dá pra fugir do assunto...
Thiago, preciso te convidar pra tomar umas cervejas e conversar sobre essas coisas da vida (e peixes e azeites, por que não?)
Ótimo texto como sempre. Adorei as desnovidades e o português que volta pra tumba.
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