Aquele mundo não era privilegiado de três dimensões como esse que você conhece, nem cheio de cores. Para usar uma referência, ele era como um papel cartão preto (porque um mundo precisa de um suporte um pouco mais firme), e tudo era preto em cima dele. E não havia sol. E quando a lua aparecia e estava cheia (ela sempre estava cheia, pois se não havia sol, o mundo não fazia sombra), dava para ver os recortes esbranquiçados dos seres, dos objetos, das coisas. Quando a lua se ia, e seu brilho fraco ia alumiar o lado de trás do papel cartão, tudo voltava à escuridão habitual.
Eis então nosso herói. Ele era preto, pequeno, tinha capa e espada. Ele era valente, ah, se era. Com sua espada negra, ele cortou pescoços de dragões, pescoços de hidras, pescoços de zumbis, pescoços de generais corruptos e de crianças que não obedeciam aos pais. E ele sempre enfrentava seus ferozes adversários em frente à imensidão circular da lua; não só porque era um jeito de enxergar melhor o alvo, mas também porque era bonito pacas.
Porém, lamentam os anais, nosso herói nunca recebeu o reconhecimento que merecia. O motivo, o leitor há de ter adivinhado, é que não era possível reconhecer ninguém naquela pretidão absoluta. Mas nosso herói não era assim o exemplo de modéstia que se manifesta nos arquétipos mais comuns dos virtuosos salvadores: ele precisava da fama, dos louros, da bajulação. Teve então uma ideia: sempre que tivesse uma vitória decisiva sobre algum inimigo e pusesse fim a mais uma ameaça à soberania da paz, sairia pelo restante da noite assobiando uma canção, um hino que ele mesmo inventara. Deste modo, sempre que o povo ouvisse aquela melodia, saberia que por lá passava o herói.
Triste é o destino, entretanto. Ao invés de reconhecer na canção o arauto que anunciava a passagem do herói, os habitantes daquele mundo apaixonaram-se de tal modo pela peça que passaram também a cantá-la pelas ruas, nas casas, sob as janelas das amantes e junto aos ombros dos ébrios companheiros de madrugada. O hino tornara-se uma febre popular.
Nosso herói não poderia ter ficado mais insatisfeito. Tentou mudar a canção, mas ninguém ligava; tentou destacar-se com onomatopeias, urros e trejeitos vocálicos característicos. Ninguém dava a mínima. Todos só se interessavam por aquela música, aquela pequena joia de três minutos (que historiadores recentes dizem ser curiosamente semelhante a My Girl). Nosso herói, desiludido, abandonado pela chama do desejo, resolveu fazer-se notar de maneira definitiva: em combate contra um dragão de duas cabeças que surgira nos arredores, ele entregar-se-ia à morte. Sem sua corajosa espada, a população estaria jogada à sorte contra os caprichos das forças bestiais do mal. E então, somente então, lembrariam-se daquele herói, de baixa estatura, de capa e espada, que tanto fez por eles.
Mas quando já estava entre as mandíbulas de uma das cabeças do terrível dragão, nosso herói finalmente apercebeu-se: seu verdadeiro legado era aquela música. Ninguém interessava-se por viver em um mundo sem luz, mas a canção deu ao povo alegria, encheu os homens de coragem e as mulheres de paixão, coloriu o som do mundo que não tinha cor. E eles sabiam, sim, sabiam quem havia começado tudo aquilo, a presença oculta que assobiava a bela melodia entre toda a gente. Ele teve, sim, o reconhecimento que gostaria.
Mas aí já era meio tarde, e ploft.
quinta-feira, 3 de janeiro de 2013
O herói
Postado por Thiago Padula às 22:06
Marcadores: Histórias avulsas
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Um comentário:
Caro amigo Padula,
Já postou 2 vezes só em Janeiro e estamos no dia 3.
Sensacional! Continue assim.
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