- O mundo não acabou.
Quando o Rafa finalmente disse isso em voz alta, já haviam se passado cinco minutos, e todos já tinham percebido o que ocorrera - ou, pra ser mais exato, o que não ocorrera. O céu continuava lá em cima, a terra continuava embaixo, as pessoas continuavam suas vidas normalmente.
- Que caralho aconteceu?
A revolta da Rebeca - que nunca dizia um palavrão - era justificada. Ela passou as últimas 24 horas transando praticamente sem intervalos. Primeiro com o namorado, Marcos, depois com o Darlan, depois com o Rafa, depois com a Ana. Nem era exatamente o que ela queria, mas "o mundo vai acabar amanhã!", todos repetiam, e parecia um desperdício inacreditável não passar as últimas horas na Terra numa orgia com os seus melhores amigos, o tipo de coisa que ela jamais faria se houvesse amanhã.
O Marcos, diga-se, não era a favor da ideia. Ele queria ficar só com a Rebeca, mas aqueles filhos da puta ficaram forçando - e ele só não quebrou a cara do Darlan porque havia outras coisas a fazer e pouco tempo, e como a própria Rebeca não foi muito contra ele decidiu não lutar por uma causa perdida. Então saiu do apartamento, mochila nas costas e lágrimas na cara, e resolveu distribuir o amor que ele tinha guardado para a ruivinha fajuta. Abraçou desconhecidos, conversou com velhinhos, comprou cigarros para os mendigos, até tocou a escaleta toda babada da menina que performava Belchior com o pai. Poucas horas depois, foi atropelado por um Civic preto guiado por um rapaz que resolveu aproveitar antes que a nova Lei Seca entrasse em vigor, e perdeu mais sangue do que podia ainda na sarjeta da Líbero Badaró.
Ninguém ia muito com a cara do Darlan, mas o poder de influência que ele tinha sobre o grupo era incontestável. Às vezes ríspido, às vezes racional ao extremo, não era o melhor amigo de ninguém ali, mas mesmo assim o grupo jamais funcionaria sem ele. Portanto não era de se estranhar que tenha partido dele a ideia de reunir todo mundo no seu apartamento para que passassem as últimas 24 horas juntos: os grandes amigos, unidos até que o mundo acabasse. O trabalho começou bem antes, na verdade, desde o ano passado, quando ele abusou de seu poder de argumentação para convencer a todos de que o mundo realmente acabaria dia 21 de dezembro.
O Pato foi o mais difícil de convencer, pois era o mais inteligente. A bem da verdade, é provável que nunca tenha se convencido de que o mundo acabaria, e que ele só se deixou seduzir pela ideia de passar 24 horas no mesmo lugar que outras pessoas que não fossem seus pais ou seus colegas de trabalho. O caso é que Pato nunca se sentiu parte do grupo, ou parte de nada, e talvez esse tenha sido o grande trunfo do Darlan: fazê-lo sentir-se incluído, prometer maconha e álcool, e pronto: se o Pato acreditava que o mundo acabaria, a tese do líder estaria muito mais estofada.
Mas o Pato ficou lá, de canto, só chapando. Quando o Darlan sugeriu que era injusto só o Marcos poder comer a Rebeca e começou a confusão, ele ficou de fora. Quando o Marcos foi embora, só ele o abraçou. Quando todos resolveram estuprar a moça do cabelo pintado de vermelho - foi como ele viu a situação -, o Pato simplesmente saiu pela porta, desceu o elevador, pegou o ônibus e torceu para não estar drogado a ponto de não saber como voltar pra casa. Se o mundo realmente acabasse, ele morreria virgem - mas com dignidade, e isso haveria de valer algo no Juízo Final, no qual ele nem acreditava.
O que levou o Pato a achar que aquilo era uma filha da putagem organizada pelo Darlan era que havia outra moça no apartamento: a Ana. E ainda que aquela japonesa toda tatuada e com uma mancha de nascença enorme na bochecha esquerda não fosse o tipo de mulher que parasse o trânsito, se o mundo iria acabar logo, não lhe parecia justo que a esnobassem completamente. Mas a Ana nunca foi o tipo de gente que encanava demais com as coisas. Talvez por isso todos achavam que ela era a mais legal do grupo, embora sua gentebonisse fosse, assim como as tatuagens e os piercings, apenas camadas de escamas que ela vestia pra que ninguém notasse seu complexo de inferioridade, sua notória perspectiva de fracasso na vida e, claro, a mancha enorme na cara. E todas essas camadas foram obliteradas a golpes de marreta quando, depois de tanto tempo, a Rebeca simplesmente a convidou para fazer amor. E então, depois de passar mais de vinte horas observando cenas abjetas, perdendo o respeito pelos amigos e se sentindo humilhada, ela recebeu a proposta de passar as últimas horas da sua vida sendo amada pela sua melhor amiga, de um jeito que ela nunca esperou.
Rebobina.
- O mundo não acabou.
- Que caralho aconteceu?
- Calma - disse Darlan, lento -, é um processo, não acontece de uma hora pra outra.
- Não é o que você tinha dito, você disse que acabaria de uma vez, que a gente não ia nem ver.
- Calma.
- Calma porra nenhuma, vou ligar pro Marcos.
Ela ligou. Outra pessoa atendeu. Página de rosto com reticências no centro.
- E aí? - Rafa perguntou.
- É. Acabou.
domingo, 23 de dezembro de 2012
O mundo não acabou
Postado por Thiago Padula às 23:21
Marcadores: Histórias avulsas
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