Sempre que preciso ir a algum lugar pela primeira vez eu faço um planejamento razoável: vejo como chegar, quais os caminhos alternativos, quanto tempo eu levo. E faço isso porque, como vocês sabem (ou não), eu não tenho carro e as coisas são um pouco mais complicadas nessa situação, mas nada que uma pesquisazinha esperta no site da SPTrans ou da EMTU não resolva.
Mas eu também sempre deixo um espacinho para a aventura. Sacomé, se acontecer alguma coisa e o plano for por água abaixo, deixar uma lacuna de planejamento aberta para o acaso, porque é divertido e tal.
No último domingo eu fui ao casamento de um amigo em outra cidade, e, visto que nenhum dos meus outros conhecidos compareceria, resolvi ir na raça mesmo, gravata no pescoço e gibizinho no bolso, em um sacolejante ônibus até um lugarejo próximo ao local do evento. A ideia era descer lá e pegar um táxi, mas eis que eu chego e não há táxi. Decido, então, ir a pé. É hora de aventura.
Pouso meus sapatos gastos sobre o asfalto quente de Ladeirópolis. O ônibus parte. Pessoas, casas eternamente em construção, subidas e descidas. Afrouxo a gravata e sigo ladeira acima pisando em minha sombra pequena. Uma garota, atraente de uma maneira nenhuma, se aproxima, estende a mão e diz "aceita um jornal?". Aceito. "É às sete e meia na Universal". Não compreendo o universo, não me interesso. Olho o jornal. Na capa, uma mulher bonita ao lado do título: "Dormindo com um desconhecido". Prevejo algo mórbido. A chamada diz: "a modelo Reeva Steenkamp foi morta na noite em que dormia com o namorado que conhecia há menos de 3 meses. Por que as pessoas ignoram os perigos de se entregar a quem não conhecem?". Um assassinato. Um caso a resolver. E uma lição: ao cometer um crime, entregue-se a um policial de confiança. Reeva cometeu o crime de dormir com o namorado após três meses e se arrependeu. Foi cruelmente morta. O culpado me parece claro: um policial. Nunca confiei neles, sempre resolvi meus crimes sozinho. Não acredito nas grandes corporações. Elas mentem e cobrem seus rastros. Onde está Reeva? Há algo que não querem que saibamos. Mas há pessoas que ignoram os perigos, como esse grupo "Universal". A garota que me entregou o jornal possuía um piercing azul entre os dentes, claramente um objeto de identificação do grupo. Ninguém usaria algo tão horroroso sem um motivo.
Ladeirópolis se estende ora sobre a minha cabeça, ora abaixo dos meus pés. As pessoas ao redor bebem, conversam e brincam. Algumas me olham torto. Talvez desconfiem de quem eu sou. É preciso tomar cuidado. O sol me banha. Afrouxo um pouco mais a gravata. Subo as ladeiras em direção ao casamento. Pessoas irão se casar, será um lindo dia. Mas não para Reeva. Ela não esperou até o casamento para dormir com o namorado e pagou o preço por isso. Sigo entre olhares desconfiados completamente desarmado, munido apenas de um celular com 3g e o telefone da minha mãe na discagem rápida. 3g da Tim. Cena da mulher virando para trás e vendo o homem com a faca em Psicose. Ele me aponta o caminho. Primeira à esquerda, no final à direita, novamente à esquerda. Chego e não há mais estrada, apenas um pequeno morro. Grama alta nas laterais, e no meio, uso meus talentos de detetive para descobrir, deve haver terra embaixo de toda a bosta de cavalo. Chop, chop, chop, faz meu sapato enquanto luto para subir. Meu velho engraxou esses sapatos, ele não poderia ver essa cena. É muito emotivo. Eu não. Não posso ser. Não nessa profissão.
À minha esquerda, uma cerca de arame farpado. O barulho das pessoas e dos golpes de martelo cessa. Ouço apenas o ruído da minha respiração pesada e da eletricidade nos fios de alta tensão. Eletricidade. Impulsos elétricos, neurônios. Pense, Detetive Padulão, pense. Vejo uma árvore, destacando-se sozinha no cume do morro. Uma árvore sinistra. Penso em Reeva. Meus instintos me apontam que ali está o corpo. Eletricidade.
Chego próximo à árvore, mas não há corpo. Quem fez isso pensou em tudo. Há, entretanto, um rato morto. Uma mensagem. Sabiam que eu viria até aqui. Continuo, agora para a descida. Os sapatos lutam com o terreno escorregadio. Volto ao asfalto, caminho mais um pouco, chego ao local do evento.
Pessoas bonitas, bem vestidas, felizes. Estou suando, desarrumado e com leves sugestões cranianas de que, se eu tivesse cabelos, estariam desgrenhados. Vou ao banheiro e me refresco. É preciso deixar isso para trás. Devo compartilhar da felicidade de meu amigo. Bruno Rocha. B. Rocha. Pílulas azuis. Imagens e palavras aparecem e se desconstroem em minha cabeça aleatoriamente. Pessoas por todo lado. Me cumprimentam. Me oferecem carona para a volta. Recuso, digo que vou voltar de táxi. Mentira, ainda preciso resolver um caso, mas não vou atormentar essa gente boa com coisas terríveis. Eles não merecem.
Começa o casamento. Dia bonito. Noivos felizes. Aquele meu amigo chora copiosamente. Termina o casamento. Todos felizes. Penso em Reeva. O amor que constrói também pode matar. Não foi o caso dela, mas foi algo que me ocorreu. Talvez um título para meu próximo conto policial. Meus contos são sempre mais suaves que a realidade. A realidade é dura demais para entreter alguém. Me despeço das pessoas, finjo que vou pegar um táxi, subo a pé. O silêncio é opressor. Eles sabem que estou aqui e se escondem. Subo o morro e nada. Desço as ladeiras e nada. Me derrotaram. Estou devendo essa para Reeva. Olho para o jornal novamente. Linda mulher. Guardo o jornal para mais tarde, quando estiver em casa. Sento no ponto, espero o ônibus chegar. Grupos de jovens passam para lá e para cá. Um deles puxa um carrinho com uma caixa de som, como um jumento puxando uma carroça. A caixa de som canta que "ele é demais, ele é o senhor". Espero e espero. Pessoas sentam-se a meu lado no banco. O telefone toca. Atendo. "Filhão!", diz a voz do outro lado. Certamente é um impostor, ninguém me chama dessa maneira, não eu que sou um detetive tão respeitável. Ouço as instruções. Cinquenta minutos, posto de gasolina, avenida do Estado. Combinado. Chega o ônibus. Devo entrar? Devo esperar uma ordem? As pessoas não se levantam e não entram porque não devem entrar ou porque me esperam, por eu ser o primeiro da fila? Sendo o primeiro da fila, sou eu que devo tomar uma atitude? Mais um mistério. Minha cabeça dói. O motorista liga o motor. É a minha deixa. Vou até a porta, piso no primeiro degrau. O motorista reclama. O cobrador ainda não entrou. Perdi mais uma. Hoje é um péssimo dia.
O ônibus parte. O impostor me encontra no posto, me leva para a casa dos meus pais, ou daquelas pessoas se passando por meus pais. Há uma festa de criança, da pequena Graziela. Apenas oito anos. Ainda não sabe da crueldade do mundo. Eu sei. Reeva sabe. O policial que a matou sabe. E sorri. Pego uma bala de coco e parto. É hora de ir para casa e relaxar após um dia difícil. Levo o jornal comigo para, ahn, consulta. Minha silhueta se distancia. Mordo a bala de coco. Quase quebra minha obturação. Bagulho duro.
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