A deusa da coordenação motora nunca beijou meus lábios. Quando pequeno, costumava deixar os lápis caírem toda hora, o lanche estava sempre no chão, meus dedos frequentemente ficavam grudados nos palitos de sorvete nas aulas de educação artística. Lembro de brigar com a minha mãe por ela ter-me feito defeituoso, e ela, sem sequer tentar explicar como as coisas são feitas, simplesmente colocava a culpa no meu pai. Mas eu não brigava com meu pai, não tinha essa liberdade.
O tempo passa, a gente - supostamente - fica mais esperto e passa a evitar certos eventos que ponham à prova nossas descapacidades. Dançar, por exemplo, nunca. Nem qualquer coisa que exija movimentos coreografados, como artes marciais (triste a vida de um homem nessa época em que há mais oportunidades para dançar que para brigar). Mas sendo a vida adulta esse mecanismo intrincado preparado para nos foder de qualquer maneira, não dá para se esquivar de tudo.
Não dá pra se esquivar, por exemplo, de receber o troco em moedas no caixa do mercado ou na catraca do ônibus. E moedas são coisas traiçoeiras, vivas, mancomunadas com Satanás. Ao contato da minha mão elas pulam e correm e rolam e fazem todo tipo de movimentos aleatórios e imprevisíveis. Ao chão elas vão, invariavelmente.
A esta altura cabe informar ao leitor, que me conhece há três parágrafos, que no meu quintal não há árvore de dinheiro. Por necessidade financeira e respeito aos descompassos sociais que nos entristecem publicamente é preciso pegar as moedas no chão. Não é uma tarefa digna, não. Desenhemos esse cenário sem os detalhes superficiais: é um homem adulto com a bunda pra cima.
Então corra os olhos pelo fio dessa meada: moedas estão caindo aos meus pés constantemente. Várias vezes por dia, até. E eu estou lá pegando-as, apontando o canhão para a lua, engolindo a dignidade que me quer escapar pelos olhos. Eu passo, portanto, boa parte da minha vida com a bunda pra cima. É uma posição vulnerável, talvez a mais frágil de todas. Você sabe do que eu estou falando. E ficou impossível separar as duas coisas: pra mim, a vida são os pequenos intervalos de tempo entre os momentos em que estou oferecendo meu cu ao mundo em troca de algumas moedas. Não é algo bonito de dizer, muito menos de admitir, mas é isso, não é?
Eu penso nisso, penso em como tudo pode ser visto como uma metáfora sem graça para a existência, e ainda me sinto empurrado pelo ventos da injustiça a culpar a minha mãe, a que me fez quebrado. Eu poderia ser surdo, eu conseguiria viver soluçando permanentemente, mas isso, isso é muita humilhação.
O leitor há de achar que estou reclamando de barriga cheia, que há coisas piores, que ao menos eu tenho moedas para pegar no chão. É verdade, admito. Mas não leia isso como um manifesto, pois não é meu objetivo incomodar a agenda de preocupações de ninguém. Quero apenas contar a minha história, nem que seja para trocar minha vergonha pelo riso alheio. Você pode achar que eu estou me rebaixando, que faço tudo isso para receber escárnio. Mas, no meu caso, é melhor receber gargalhadas que receber moedas. Afinal, é preferível o risco de rirem de mim que o risco de comerem minha bunda.
Ps: O autor achou por bem deixar claro que essa é uma obra de ficção, sem relação com a vida real - exceto a parte sobre não gostar que lhe comam a bunda.
sexta-feira, 18 de outubro de 2013
Bunda pra cima
Postado por Thiago Padula às 13:26
Marcadores: Histórias avulsas
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário