Ele abriu a porta do galpão e a luz brilhou de um jeito engraçado por cima da massaroca meio-cinza-meio-esverdeada-meio-incolor que se acomodou no lugar durante o tempo que ele ficou fora. A quantidade do negócio dava a medida de quanto tempo ele esteve longe do espaço: estava por todo lugar. No chão, nas paredes, descendo do teto como estalactites, pingando em movimentos arqueados arremessados pelo ventilador pendurado. Em alguns lugares, amontoava-se como pequenos outeiros. O cheiro era forte, ardido, desagradável, e o chiado que fazia quando seu calçado pisava e soltava - shlep, shlep - revelava uma textura pegajosa. Ele passou o dedo na substância e levou à boca, pra perceber que o gosto era só amargo, nada mais.
Depois de alguns minutos, sentiu-se não só habituado, mas também preenchido. Era como se o cheiro forte entrasse pelas suas narinas, invadisse os pulmões e ficasse lá. Não era exatamente confortável, mas deu a ele uma espécie de sentido para manter-se de pé que ele não tinha havia muito tempo - foi por isso que resolveu voltar para o galpão, para começo de conversa.
Então começou a trabalhar. Com as mãos em concha, foi juntando um pouquinho dali e outro pouquinho daqui, aparando as pontas, desenhando os detalhes. Fez um castelinho, depois fez outro maior. Fez uma coroa, pôs na cabeça. Saiu pela porta do galpão, fuçou sabe-se lá onde e voltou com uma pá, e então começou a lidar com quantidades cada vez maiores do material. Fez um altar com escadas, e sobre ele fez um trono. Sentou-se no trono, as nádegas confortáveis sobre a consistência macia da meleca. Fez um cetro, e decidiu que era hora de ver outras pessoas, interagir com elas.
Foi até a porta do galpão e abriu-a. Deu as costas para a luz intrometida, subiu os degraus e posicionou-se sobre o trono, coroa na cabeça, cetro nas mãos. Lá fora, pararam para observar. O rei. Apontou seu cetro para o primeiro e ofendeu-o. Caçoou do trabalho da segunda, menosprezou os ideais do terceiro. Do lado de lá da porta, puseram-se em movimento novamente, mas ele continuou apontando e disparando enquanto as pessoas passavam e iam, algumas vezes dando uma olhadinha, em outras ignorando-o completamente. Um dia, precisou fazer xixi, mas não pôde sair: os tornozelos e metade das canelas já estavam atolados no negócio. Ele começou a olhar ao redor, e viu que o galpão ficava cada vez menor, pelas janelas passava cada vez menos luz, pela porta acenavam cada vez menos pessoas.
Sem saída, ajeitou a coroa, fez sua melhor cara de desprezo e continuou com sua monarquia de mentira. Quis viver como um rei, deve morrer como um rei. Tendo aceitado seu destino, ficou implacável. Ele e seu cetro tornaram-se um só, recarrega, aponta, dispara, recarrega, aponta, dispara. A meleca já ocupava mais da metade do galpão, e aumentava num ritmo mais veloz a cada segundo.
Então, quando ele já estava suavemente deitado nos braços do destino, um ruído terrível partiu o céu em dois, e de repente o galpão veio abaixo. Lutando para se livrar da avalanche que o soterrara, sentiu algo agarrar-lhe pelo estômago e puxá-lo para fora, para cima, e para a frente. Estava nas garras de um pterodáctilo-ciborgue que bailou atmosfera acima recitando Edgar Allan Poe numa voz metálica. Quando a terra abaixo passou a ser um mapa, a pressão em sua cintura sumiu e as nuvens correram céu acima para lhe estapear o rosto.
Ele quis viver como um rei e aceitou morrer como um rei. Mas nunca foi bom com finais.
domingo, 23 de junho de 2013
O rei
Postado por Thiago Padula às 21:13
Marcadores: Histórias avulsas
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