quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Viu, vó (ou Tribute to a work in progress)

Se eu fosse uma dessas pessoas injustas que nunca assumem a culpa, vó, eu ia dizer que a senhora me estragou. Fique tranquila que eu não vou lhe jogar essa bomba em cima, mas não pense que está salva não, dona Helena. Não pense que eu esqueci de todas as bolachas que a senhora escondia pra mim quando a minha mãe me proibia de comer porcaria, nem do Nescau que me dava pra tomar quando minha mãe insistia no Sustagen, nem do Sustagen que me dava pra tomar quando minha mãe desistia mas a senhora sabia que havia muito trabalho a fazer naquele moreninho mirrado.

Não pense que eu não via que a senhora me beneficiava claramente a despeito do meu irmão, esse coitado que teve o azar de não ser o primeiro neto só por um ano e meio. Eu sei, vó, que a senhora ajudava a pagar minha escola quando tava difícil pro meu pai, e que quando eu fui estudar na ETESP e o pobre do seu filho perdeu o emprego no Sudameris a senhora me dava dois reais todo dia pra comprar lanche. Confissão, vó (ai que vergonha): eu nunca comprava lanche, guardava tudo pra comprar mangá. Vixe, vó, não tem ideia da quantidade de pastel que eu deixei de comer pra ler Yu Yu Hakusho. A senhora (vergonha é tua agora) foi diretamente responsável por eu crescer fraco, desnutrido e viciado nessas porcarias japonesas.

E quando eu fui pra faculdade, vó, e toda noite a senhora ligava pra saber se eu tava chegando? A senhora achava que o escadão era perigoso porque tava sempre cheio de maconheiro, mas maconheiro nunca fez mal pra ninguém nessa vida. E então essa bosta que a senhora tem na cabeça começou a evoluir e aí era uma farra do boi da porra, a senhora me ligava no meio da aula, ou ligava 10 minutos depois quando eu dizia que ainda ia levar uma hora.

Mas a senhora já teve sua quantidade de sofrimento comigo também. Lembra como eu sempre dava um jeito de derrubar a sua santa de gesso e quebrar a cabeça dela? Se a Igreja soubesse da quantidade de mães de Jesus que eu decapitei eu tava bem lascado. E aquela vez que eu tinha acabado de tirar carta de motorista e fui te levar no posto, e deixei a Elba do vô morrer na subida? A senhora dizia "tem nada, não se preocupa, não fica nervoso", e depois desatava a cantar música de igreja. Hahahaha. E nessa mesma corrida, quando eu já tinha chegado na rua de casa na volta e a senhora quis saber onde a gente tava, foi que eu percebi que tinha começado.

Tem sido uma viagem longa, né, vó. Longa e ruim. Primeiro não sabia onde estava, depois tacava todas as minhas meias na cândida, depois ficou difícil articular os pensamentos, a fala, os movimentos. E quando a senhora já pouco se articulava, e ficava o dia inteiro com aquela cara de brava simplesmente andando de um lado pro outro porque era a única coisa que a senhora conseguia fazer, a senhora tinha a moral de chorar quando me via. De chorar, vó! Eu tenho uma macheza a perpetuar, vó, a senhora não pode fazer essas coisas! Tudo bem que a senhora acha que eu sou só um menino educado e gentil, e eu sou mesmo, mas os outros não podem saber.

E o motivo de eu estar escrevendo tudo isso agora, vó, é que eu preciso te dizer essas coisas enquanto a senhora está viva. Eu sei que a senhora não tem mais condições de ler nada, mas também não ia entender se eu falasse, e eu sempre fui melhor com as letras que com a voz. Além do que, vai que a gente acha que a senhora tá aí nessa viagem pelos domínios da demência sem saber de nada e na verdade a senhora está é conectada a um ambiente virtual e consegue acessar tudo que aparece na internet com a mente. Já leu Neuromancer, vó? Deve ter em pdf, dá uma procurada.

Viu, vó, eu sei que joguei um monte de coisa na sua cara, e a senhora, convenhamos, foi meio filha da puta mesmo com a minha mãe (essa mesma que agora te dá banho e te limpa a bunda, minha mãe é uma pessoa boa demais), mas a senhora me amava, né. Deve amar ainda, espero. E nessa a senhora meteu os pés pelas mãos e fez coisas que fariam os psicólogos infantis buscarem asilo no Tibet, mas, cá pra nós, foda-se essa merda toda. Amor bom é assim, irracional, sem limites, cheio de Trakinas de chocolate escondidas no guarda-roupa. Além do que, nunca vi alguém ficar com cicatrizes emocionais por causa de um monte de bons momentos. Deixa esses palhaços falarem, vó. São um bando de otários criados pelas avós (hihihi).

Daqui, do meu lado, eu só quero dizer que a senhora, no meu time, é o 9. E brigado, viu. Por ter casado com o meu vô (esse homem incrível), por ter dado à luz o meu pai, por ter comprado aquele jogo de cama muito foda dos Transformers. Um beijo pra senhora - isso eu posso fazer pessoalmente depois, mas essa carta precisa terminar de algum jeito.

(Aproveitando, prometa não surtar, mas eu não acredito mais em Deus. Beijo, tchau!)

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