quinta-feira, 9 de abril de 2015

Instigado

Não me lembro qual era o dia exatamente, e nem importa, mas lembro que era no segundo semestre de 2005, era sábado e fazia frio. Eu, burro, saí de casa de manhã sem a carteira e aí eu, burro, fui na feira e pedi um pastel e aí, burro, percebi que tava sem carteira, e aí, sortudo, achei um vale-refeição na mochila (eles eram feitos de papel naquela época, veja você), e aí, sortudo, a moça aceitou, e aí, sortudo, ela me deu o troco em dinheiro. Com esse punhado de moedas eu fui pro centro porque havia um trabalho da faculdade a fazer e aí precisava de inspiração, porque quando você é estudante você acha que é artista, mesmo sendo estudante de publicidade, e aí a gente ficou lá durante boa parte do dia, tivemos ideias, pareciam boas na época, que legal. A Patricia e a Karin voltaram para as suas casas, a Patricia pra continuar o trabalho, a Karin pra descobrir que queria fazer publicidade também (ela tinha uma chance, fomos negligentes), e eu fui pra Barra Funda porque ia ter uma espécie de festival no Memorial da América Latina com uns artistas nordestinos. Eu fui pelo Mombojó, pelo sangue pernambucano que carrego nas veias, apesar de que o Junio Barreto também era pernambucano e, ainda por cima, de Caruaru. Eu não sabia, nem o conhecia na época além do nome, como também não conhecia o Cidadão Instigado, que tocou depois dele. E foram mesmo os representantes do Ceará que me chamaram a atenção, que baita show, que boa banda, que guitarrista peculiar. Fui atrás, sacomé, é isso que a gente faz quando é jovem, a gente tem curiosidade.

Quando encontrei o Cidadão Instigado de novo já era 2007, e foi bem no dia da colação de grau. Não da minha, exatamente, porque tinha duas colações de grau: a dos pé rapado, uns meses antes, foi no próprio prédio da faculdade e não teve nada, não teve glamour, só teve uns juramentos, um cara ficava de pé no palco dizendo e a gente repetia solenemente "eu juro agradar meu cliente, eu juro fazer o produto de bosta dele parecer legal, eu juro falar estrangeirismos mesmo quando há uma alternativa perfeitamente cabível em português". Não lembro cem por cento, mas era mais ou menos isso. E a outra colação de grau, desculpem o desvio, era do povo que pagou pela formatura, dos burguês, dos inimigo, a Patricia que me desculpe, aí foi aquela coisa bonita, teve toga, teve we are the champions (do que?), teve paraninfo, mas não teve eu, e não teve o Maranhão (que era maranhense) e não teve o Pinoxê (que não poderia ser menos chileno), porque a gente foi ver o Cidadão Instigado num muquifo na Vila Madalena. Antes deles tocou um cantor meio calvo que fazia versões daqueles mesmos clássicos intragáveis da música brasileira e que poderia muito bem ser um cantor de boteco se não fosse por ter uma banda de apoio e uma camisa cheia de brilhinhos (sabe esses cara?), mas aí teve o show principal e dessa vez eu conhecia as músicas e aí bateu mais forte, foi bonito, o Catatau cantava que o tempo, uôô, é um amigo precioso. Mui amigo, eu diria, porque olha quanto tempo faz e olha o que ele fez comigo, me levou os cabelo, me deu uma banda, só o que me separa daquele cantor agora é a camisa de brilhinhos e o desrespeito pela obra do Jorge Ben.

A terceira vez foi em 2009, e foi curtinho, sacomé show de abertura, mas foi bonito. Ele falou "essa música vai tá no nosso próximo álbum" e disparou "Escolher pra que?" e a Dani, que não era muito íntima da banda, não entendia minha empolgação quando eu dizia que aquela música era boa pra caralho, que aquilo devia tocar no rádio. Rádio era um negócio que existia em 2009. Nesse dia eu também fui fotografado pra uma matéria na Folha, que eu nunca vi, não quero ver, tenho raiva de quem viu (mas fui agora no acervo do site pra procurar e minha foto não entrou na matéria, rá).

Depois disso eles lançaram o tal próximo álbum, muito bom, excelente, e eu de vez em quando passava pelo Catatau na rua, numa das vezes até pensei "conheço esse mendigo de algum lugar" e ele olhava pra mim provavelmente pensando "conheço essa música de algum lugar" porque eu ouvia as músicas dele no meu fone de ouvido Phillips de baixa qualidade que não tinha entre seus principais atributos manter o som só dentro da minha cabeça. Mas foi isso, nesse estágio a nossa relação ficou durante muito tempo, até que

Até que eles lançaram um disco novo, aleluia, e o disco é bom pra caralho, que novidade. Eu vou pedir aqui licença pro leitor que tem passado já todo esse tempo comigo nessa jornada desviando da metralhadora de vírgulas pra fazer um pequeno mimimi, pode ser um mimimi coletivo, quem sabe o leitor não sofre o mesmo que eu? O caso, amigo, posso te chamar de amigo?, é que eu fiquei adulto. O tempo, uôô, veio e me atropelou. E eu soube disso não quando fiquei de pé na colação de grau fingindo que repetia o juramento da categoria, nem quando a pilha de contas pra pagar se acumulou em cima da mesa, nem quando meu pai e meu irmão se despediram de mim na porta da minha casa, minha nova casa, e me deixaram lá pra sempre. Eu soube que virei adulto quando eu deixei de me emocionar ao ouvir música, quando eu deixei de cantar em voz alta na rua no meio de uma tempestade (porque não tinha mais ninguém na rua e aí não dava vergonha), quando eu deixei de mandar música pros outros gritando que isso é bom pra caralho, devia tocar no rádio. Eu virei adulto, resumindo essa besteira toda, quando eu morri por dentro. Acredito que aconteça com um monte de gente, alguns até deveriam morrer por fora também, que horror, não diga uma coisa dessas. Mas então eu ouvi o álbum novo do Cidadão Instigado, e aí eu senti aquilo de novo, aquela sensação de estar fazendo exatamente a coisa certa, de estar vivendo, de ficar à beira de uma crise de choro no meio da rua por causa de um solo de guitarra. É isso, cacete, é isso! E não é uma volta no tempo, uôô, e, se quer saber, o tempo que se foda. Não é a saudade, não é a nostalgia, é a intensidade, é a completude, é sentir alguma coisa além de dor e vergonha. Hoje, agora. Viva o rádio, viva o ticket de papel, viva a Dani, o Maranhão e o Pinoxê, mas, se quer saber, 2005 foi uma bosta, 2007 foi uma bosta, 2009 foi uma bosta, mas 2015 há de ser bom, porque tem música, porque tem ela, porque tem show deles hoje depois de 6 anos e vai ser o melhor show da minha vida, mesmo se não for.

Tá, não vai ser, e daqui a pouco a empolgação se vai, a gente sabe como é forte o campo gravitacional da pasmaceira. Mas olha, é boa essa sensação. Talvez eu deva começar a beber.