terça-feira, 22 de julho de 2014

Minha profissão

Perguntar não ofende, mas algumas perguntas nos deixam mais desconfortáveis que outras. Isso vai de cada um: tem gente que não gosta de ser questionado sobre sua vida particular, tem gente que não quer dar satisfação sobre onde esteve na noite passada, tem gente que não consegue responder pra uma criança de 6 anos o que aquele moço que não é o pai dela está fazendo pelado debaixo da cama. E tem gente que é aberta a tudo, a quem não falta articulação para falar sobre qualquer coisa, para quem nenhum assunto é tabu. Mas esse blog nunca foi sobre gente que não tem nada a esconder.

Há dois meses eu estive com meus desafortunados companheiros de banda gravando um programa de TV que teve, além da parte em que a gente maltrata as cordas dos instrumentos e os ouvidos da audiência, uma entrevista com todos (não me perguntem como ficou, eu não vi, graças a deus). Em dado momento o cara quer saber qual a profissão de cada um (ele inferiu que uma coisa que a gente não poderia ser era músico profissional) e eu me liguei que essa é uma das tais perguntas que me deixam desconfortável. Mas por quê?

A primeira suposição, claro, é a de que eu tenho vergonha da minha profissão. Mas não é exatamente verdade. É um trabalho honesto, paga minhas contas, eu consigo fazer relativamente bem. Não é aquele tipo de profissão que te dê bônus de carisma, que gere inveja/admiração alheia ou que abra portas normalmente fechadas para os civis ordinários, mas poderia ser muito pior, como os outros dois caras da banda que tiveram que dizer que são publicitários.

Comecei a puxar pela memória. Lembrei que anos atrás, quando alguém perguntava, eu dizia que era desenhista. E responder assim a esse tipo de pergunta é quase garantia de receber em seguida um olhar piedoso ou de desprezo. Eu não era desenhista, nunca fui, mas achava melhor responder isso do que a verdade. Mas ora bolas, se eu não tenho vergonha da minha profissão de verdade, por que dizia outra?

Segunda suposição: eu tenho vergonha de dizer que tenho um trabalho que seja parte do "sistema". Quem me conhece sabe que eu não tenho nenhuma camiseta do Che Guevara e que acho o Rage Against the Machine uma banda boa, não mais que isso. Eu sou um revolucionário em conflito: torço pelo caos, mas rezo ajoelhado pela ordem. Falamos sobre isso outro dia. Nem eu nem ninguém espera de mim essa atitude combativa de gritar contra o capitalismo e pixar muros de empresas, e assim um empreguinho estável sob as asas quentinhas de um CNPJ não me contradiz e ainda me cai bem.

Então eu me toquei que o problema não era dizer qual é o meu emprego: é admitir que eu tenho um emprego. É mais um processo de autoconvencimento: ser desenhista também é um emprego (ou pode ser), mas pra mim sempre foi hobby e diversão. Na verdade, o momento em que eu comecei a cobrar por isso foi o momento em que desenhar virou um porre. Eu gosto do trabalho, acho ele fundamental pra retardar o processo de morrer por dentro - que é pior do que a outra morte, a que a gente faz mais esforço pra adiar. Mas a ideia de ter um emprego, de oferecer a uma atividade que eu sou competente pra fazer a responsabilidade pela minha subsistência, é um negócio meio pesado pra quem tem procurando sistematicamente se negar a crescer. Eu não me preparei para a vida adulta e nem quero essa desgraça. Mas essa é a única mecânica que, na falta de coragem para viver a vida livremente, me possibilita ter sempre refrigerante na geladeira e jogo novo no Steam. É um equilíbrio que eu ainda estou buscando, mas não sem passar um certo desconforto nesse meio tempo.

Tanto é que eu terminei o texto e ainda não falei no que eu trabalho.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Obrigado, Harry Potter

25 de novembro de 2001, domingão à tarde, ligam lá em casa. Vamo ver o filme do Harry Potter, querem ir? Queremos. Meu irmão e minha prima liam os livros, gostavam e tal, e eu achava a experiência de passar uma tarde de domingo no cinema sempre divertida, qualquer que fosse o filme. Pois lá passamos duas horas e alguma coisa aprendendo sobre bruxos jovenzinhos que vão pra escola e jogam bola em cima de uma vassoura. Pra ser sincero, achei tudo uma bobeira sem fim, mas qualquer atividade era melhor que ficar em casa desenhando, como de costume.

Na volta a gente desceu na casa da prima e do primo, e na TV passavam os minutos finais do jogo sagrado de domingo. Mas o resultado na tela foi uma cacetada nas minhas pretensões de vida: Vasco 7x1 São Paulo. Minhanossassenhora, como foi que isso aconteceu? Rogério foi expulso, diziam os comentaristas, aí entrou o Alencar, maior frangueiro que eu já vi no futebol profissional. E por um peruzeiro no gol contra o Romário é garantia de massacre. Fiquei meio zonzo, meio atordoado, mas por pior que fosse, não chegava a ser tão terrível. Pior seria assistir o jogo inteiro, ver cada gol acontecendo, cada bola entrando, cada cagada da defesa, cada comemoração da torcida adversária. Ver só o resultado no final é como ler uma notícia sobre uma catástrofe, que você pensa "oh não, que coisa terrível" mas secretamente agradece que não foi com você. E por isso eu só podia direcionar meus agradecimentos a ele: Harry Potter. Se eu fosse crítico de cinema, teria adicionado mais uma estrelinha pro filme na hora. Vida longa a Hogwarts, quadribol é melhor que futebol, vai Grifinória (ou qualquer que seja o nome daquela que tinha os mongolão, que era mais o meu perfil).

De lá pra cá, muito mudou. O São Paulo ganhou três títulos nacionais, o Vasco foi rebaixado duas vezes, os livros do Harry Potter acabaram, os filmes do Harry Potter acabaram (não com a minha audiência), a Hermione cresceu (com a minha audiência), eu parei de desenhar e ir no cinema perdeu um pouco da graça. Foram 12 anos e meio, e só agora eu me senti confortável pra falar sobre esse assunto, sobre essa goleada tão acachapante, tão desmoralizadora, tão voldemortesca.

Então em 2027, se eu ainda estiver vivo e se esse blog ainda existir, a gente conversa sobre o que aconteceu essa semana.

sábado, 5 de julho de 2014

Um lugar na história



Eu sei que já escrevi isso por aqui antes, mas vamos lá: eu adoro Copa do Mundo. E apesar de essa estar sendo, até aqui, sensacional - ao menos desportivamente - eu ainda via um certo problema de encaixe histórico nessa seleção brasileira que não a credenciava ao título. E por "credenciar" eu quero dizer que eu não aceito, não com essa bolinha aí.

Estou sendo babaca, já aviso agora. O que eu quero dizer é que, dado o meu apreço pela história das Copas, eu posso tender a ser meio superprotetor com quem eu acho que tem o direito de ser campeão (e eu entendo que se há uma coisa que não tem o menor impacto nisso tudo é a minha opinião). Cada Copa precisa ser uma história, e cada campeão precisa ser um carregador digno dessa bandeira. Ou por se impor tecnicamente sobre os demais (Brasil em 58 e 70), ou por oferecer um desfecho trágico àquele que se impõe (Itália em 82, Alemanha quase sempre), ou por oferecer à conversa o grande craque que se torna o símbolo da conquista (Maradona em 86, Romário em 94, Zidane em 98). E a seleção brasileira dessa Copa de 2014 não tem nada disso: é um time fraco, não-competitivo e cujo tal craque ainda carecia de se demonstrar à altura da tarefa.

Mas então o Brasil jogou contra a Colômbia pelas quartas de final e fez uma boa partida, claramente melhor que as anteriores, claramente insuficiente ainda do ponto de vista técnico. A Colômbia era um grande adversário por ser, essa sim, uma seleção que já havia ocupado seu espaço na história. Vencê-la era um ponto fundamental para o Brasil almejar a mesma coisa, mas ainda não era tudo. Até que no segundo tempo de um jogo em que imperou a lei do sarrafo (de lado a lado) o lateral Zuñiga tentou subir uma escada invisível mas foi deselegantemente interrompido pelas costas de Neymar, encerrando a participação do craque canarinho na Copa que era pra ser sua. Zuñiga e seus familiares foram xingados e ameaçados de morte e outras violências naquilo que há de ser deus testando a humanidade e esta falhando miseravelmente. Faltam escolas no país, é verdade, mas tem faltado também a boa e velha educação que se recebe em casa.

Sem Neymar, lamento dizê-los, o Brasil é um time tão capaz de vencer uma Copa do Mundo quanto eu sou de namorar a Bruna Marquezine. E foi assim, com uma joelhada nas costas e uma lesão infeliz, que a seleção brasileira paradoxalmente se encaixou no fluxo da história e se tornou merecedora do título, ao menos nos meus exigentes critérios.

A seleção brasileira é muito ruim. Meu deus, horrível. Tem dois zagueiros fabulosos, mas também tem o Jô, provavelmente o pior jogador a calçar uma chuteira em todos os tempos, e olha que eu já calcei uma. Mas um time desses vencer a Copa, apesar de todas as suas limitações, impulsionado apenas pelo apoio popular e pela vontade de entregar essa taça a um dos seus (o que é bem diferente de vingança, seus filhos dumas puta) é justamente o que tornaria esse título espetacular, uma das melhores histórias a se contar sobre uma Copa do Mundo. Não seria o Brasil de 70 nem a Argentina de 86, mas seria melhor ainda: seria como o Uruguai de 50.

E isso seria provavelmente o desfecho mais poético de todos: ganharíamos finalmente o mundial em nossa própria casa, exatamente da maneira como perdemos a primeira vez. Dessa vez não seremos vítimas do Maracanazo, mas AGENTES dele. A partir de agora, eu estou proibindo qualquer outro time de ganhar essa Copa: seria um crime contra a história. O futebol é técnica e tática, mas é, antes de tudo, um livro cheio de páginas em branco. Seria escrotice escrever uma história ruim nele.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Orkut

Eu entrei no Orkut acho que em 2004, e me matei em 2005. Na época as coisas eram diferentes, redes sociais eram novidades e as pessoas até usavam termos hoje obsoletos como "web 2.0" e "urru novo jogo do Sonic". Pra entrar no Orkut você precisava ser convidado, uma dessas babaquices exclusivistas que existem desde sempre na internet porque tem pessoas que querem se sentir importantes. E pelas estalactites de mágoa que se penduraram na frase anterior você deve ter adivinhado que eu tive alguma dificuldade pra participar do negócio.

Não vou negar: eu acessei o Orkut do meu irmão e me convidei. Comecei minha carreira nesse universo das redes sociais como um larápio que ganha acesso a um local para onde não foi convidado porque esse mundo não foi feito para essa gentalha. E eu percebi isso depois de pouco tempo: o Orkut era como uma festa em que o único lugar confortável para você é o canto da parede. Era muita amizade, muita curtição, muitos scraps, muitos depoimentos. Eu só tive um depoimento: "Padula, você merece mais do que essa vida miserável que você leva". Obrigado, amigo.

Como eu nunca me dei mesmo à interação social, pulei do topo do prédio e enterrei meu crânio no esquecimento digital. Como diziam, se você não estava no Orkut você não era ninguém, e essa função me cabia melhor. Voltei às redes sociais vários anos depois, porque a gente envelhece e amolece, mas nunca me senti totalmente à vontade ou tive certeza de que estava me comportando direito (o Twitter deve servir pra mais coisas do que apenas xingar os jogadores do São Paulo gratuitamente, por exemplo). E então essa semana surgiu a notícia de que o Orkut será finalmente encerrado no dia 30 de setembro.

E eu criei uma conta nele.

Senhores, não quero ser palhação (embora eu seja) ou saudosista brega (embora eu seja embora eu seja). Mantenho minha posição inicial: esse mundo de gente feliz, sorte do dia e o que falar desse cara que eu mal conheço mas já considero pacas continua não sendo pra mim. Porque eu não gosto de gente feliz, não gosto de sorte, não gosto de dia e posso garantir que o melhor é que eu mal conheça esse cara, porque me dá mais uma semana e eu não vou gostar dele também. Mas vocês sabem o que é o Orkut hoje? Um mundo que já viu o apocalipse e agora vê o rastro vermelho do cometa vindo terminar com tudo.

Não há mais jovens e hormônios. Eu ando no chão poeirento e piso em cadáveres, em corações e gelinhos despedaçados, em gifs animados e flyers de balada. Eu vejo pessoas conhecidas congeladas, com a aparência de 10 anos atrás. Eu passo na frente de um grande coliseu chamado "Eu odeio as segundas-feiras", aos pedaços. O céu é sempre vermelho, o silêncio predomina.

Essa é uma rede social pra mim, caro leitor. Gélida, vazia, com todos os componentes que simulam um universo fantasioso adequado à minha imaturidade. Eu nem fico zanzando, procurando conhecidos ou explorando comunidades. Só fico lá, no silêncio. É agradável. E o fim do mundo é um cenário que me fascina - não lembro se postei aqui sobre isso, mas já escrevi uma música -, de modo que eu não poderia escolher um lugar melhor pra sentar numa cadeirinha de praia e ver o horizonte se desmanchando.

Óbvio que nada disso vai acontecer de verdade, mas essa é uma das vantagens de ser um bobão: as coisas são bem mais legais na minha cabeça.