segunda-feira, 31 de março de 2014

Essa história

Acordou lá pelas 8, o que era bem tarde (não que ele tivesse algo pra fazer). Abriu a porta, olhou a paisagem se achatando quilômetros abaixo dos seus pés. Era bom estar tão alto. Foi até o esqueleto da baleia, se apoiou numa vértebra e tirou mais um cochilinho. A história de como essa baleia foi parar no topo de uma montanha isolada de quatro mil metros de altitude é muito boa, mas essa história não é sobre isso.

Acabou cochilando mais do que os 15 minutos planejados, até que a sombra do osso saiu de cima dele e entre seu rosto e o sol não havia mais nada visível a olho nu. Acordou assustado, puxou ar bem forte, mas o ar não vem tão fácil quando se está tão alto. Ele ainda não tinha se acostumado. Voltou pra dentro de casa, acendeu o fogo e deixou a água fervendo. Já não chovia tinha algum tempo, e descer pra buscar mais água envolve uma expedição de alguns dias e sério risco de morte, de modo que ele tentava postergar isso o máximo que pudesse, principalmente depois da última vez. Mas deixa a última vez pra lá, vamos nos ater a essa história.

Sentado na mesa, segurou a foto dela e ficou olhando enquanto tomava café. Era a mesma coisa todo dia. A foto já estava desgastada, os cantos rasgados, um buraquinho de cigarro na parte de baixo. Mas ela continuava linda. Suspirou e se arrependeu, como todo dia, como toda hora desde que chegou ao cume daquela montanha. Mas não dá pra voltar no tempo, e ela não estava mais lá. Continuava se lembrando daquele último momento, de como ele deveria ter esticado o braço para ela ao invés de se segurar na árvore. Mas isso é o passado, e não é do passado que essa história se trata.

Essa história é uma merda.

sábado, 22 de março de 2014

Ao contrário do Bruno de Luca, eu não tenho um programa de viagem

Dois meses atrás, num acesso de coragem e desapego pelo dinheiro e pelas obrigações, comprei ingressos para três dias de um festival em Barcelona no fim de maio. Comprei os ingressos, comprei as passagens, reservei o hotel e molhei o carpete do escritório com minhas lágrimas num emocionante pedido de uma semaninha de folga para o meu chefe (que gentilmente liberou, o que me deixa em débito com eles e pode se voltar contra mim, quando por exemplo me pedirem um dia pra fazer as minhas tarefas ao invés de ficar vendo os posts antigos do AjudaLuciano). Estou com tudo pronto, então, para molhar meus pezinhos no Mar Mediterrâneo uma quinzena antes de começar a Copa - ou seja, dá tempo de vir pintar as calçadas de verde e amarelo, o que eu não perderia por nada.

...Só que, né, também não estou tão pronto assim. Depois desse pulsar de determinação e foco nos objetivos, eu voltei a ser eu mesmo e não fiz mais nada. Não comprei euros, não aprendi espanhol nem catalão (apesar de que esse se parece com português dito por alguém com a boca anestesiada), não planejei meus passeios pela cidade, nem liguei ainda na Decolar.com pra perguntar qual foi a mudança no horário do meu voo que eles anunciaram um tempão atrás. Pior, nesse meio tempo ainda inventaram uma iminente guerra no leste europeu e um avião desapareceu sob a suspeita de sequestro terrorista, o que não é um fato que favoreça minha pele marrom, minha barba negra e minhas profundas olheiras. Além disso, pra passar uma semana lá eu precisarei deixar meu coração em São Paulo. Não que eu vá sentir falta desse inferno, é que o Jesus and Mary Chain toca de graça aqui bem no fim de semana em que eu aterrisso lá. E vai que eu fico tão tocado com essa partida que resolvo desembarcar lá cantando "I wanna die just like Jesus Christ", isso não há de me ajudar muito.

Mas, mesmo assim, estou empolgado. E há de ser uma boa experiência para esse blog, ser escrito em outro hemisfério, outro continente, ¡otro idiuema! (preciso treinar um pouco ainda). E, se não quiserem me deixar entrar por acharem que eu sou terrorista, que essa próxima frase seja um atestado da minha inocência: senhores agentes da imigração espanhola, saibam que tenho tanto medo de bombas que só explodiria uma se não tivesse que viver pra ver o resultado depois.

Acho que agora eu tô garantido.

Dodói

Se tem uma coisa que eu gosto a meu respeito (disse "se", não é certeza que eu goste de algo) é que, apesar do meu físico frágil, do meu psicológico tênue e do meu histórico de patologias na infância, hoje em dia é bem difícil eu ficar doente, sabe-se lá por que milagre. E considerando também a minha alimentação (nenhuma) e atividades físicas (nenhuma), posso dizer que sou, eu mesmo, uma afronta à indústria farmacêutica.

Explico: não é que eu e a dona indústria tenhamos grandes conflitos não resolvidos (na verdade, tenho que agradecê-la pela ridícula melhora da minha rinite), é só que, na medida do possível, eu me recuso a tomar remédio. Hoje, e desde alguns dias, estou com uma leve gripinha, nada muito grave. E não, não tomarei remédio por causa disso. Poxa merda, pra que eu vou ficar mimando meu sistema imunológico com presentes e Attack +10 se isso certamente vai criar pra mim lá na frente um grande problema? Na hora que a coisa apertar, se não houver remédio, se o remédio não der conta, como eu espero que meus soldados vão enfrentar o perigo sem o auxílio do dopping? De que adianta ter uma equipe de Lance Armstrongs se na hora do aperto eles precisam de bicicletas com rodinhas pra correr?

Então não, não tomo. Se puder evitar, tô fora. Assim, meu corpo fica forte (por dentro, por fora eu ainda preciso inventar pra moça do trabalho que eu desloquei o pulso e por isso não posso levar o galão de água da cozinha lá pra sala) e eu só fico doente a cada volta completa de Urano ao redor do Sol.

Isso tem alguma base científica? Não, nenhuma (até porque desde que eu nasci Urano não chegou nem perto de completar a volta). Eu recomendo para as outras pessoas? Não, não venha dizer que a culpa é minha. Mas estou bem, estou vivo, estou quase sempre gozando de perfeita saúde, apesar de contrariar todos os bons conselhos da medicina e da minha mãe (em ordem crescente de sabedoria). Então vocês avaliem aí se esse negócio de ficar engolindo remédio para cada dor no cílio é mesmo uma boa estratégia (mas qualquer que seja a conclusão, não me responsabilizem).

Claro que eu tenho só 29 anos e que muita coisa ainda pode acontecer e que, se todos esses milênios de avanços científicos serviram pra alguma coisa, tudo isso vai cobrar seu preço lá na frente e um belo dia eu estarei andando na rua e de repente meu olho vai cair, meu pé vai virar ao contrário e minha cabeça vai ficar do lado da minha virilha. Mas até lá: chupa Pfizer, chupa Novartis, chupa Aché.

Aí acontece igual no Jardineiro Fiel e eles me matam.

terça-feira, 11 de março de 2014

Professor Futebol

Quem gosta de futebol ou pelo menos acompanha os noticiários sabe que nas últimas semanas apareceram alguns casos de racismo, em jogos na América do Sul e mesmo dentro do Brasil (na Europa tem todo dia, nem é notícia mais). Também começou-se uma discussão tímida sobre homofobia após os gritos da torcida corintiana direcionados aos são paulinos (que não é um tratamento exclusivo dos alvinegros paulistanos, diga-se) e vez ou outra uma árbitra ou auxiliar mulher comete algum erro e o machismo vem abaixo.

Os argumentos que relevam ou defendem os fatos baseiam-se naquela história de que foi sempre assim, futebol é isso mesmo, pra provocar o rival vale tudo e tal. E a provocação é o combustível do jogo, concordo: futebol sem zoeira é igual esporte olímpico. Mas acho que pra um esporte que goza de tanto prestígio, influência, importância e adoração popular, passou da hora de deixar de ser apenas esse microcosmo de isolamento moral onde certas coisas são permitidas desde que dentro daquele contexto. Tá na hora do futebol ser exemplo.

Ora porra, vejamos: muito dinheiro é investido no futebol, seja privado, seja público (no último caso é o seu próprio dinheiro, no primeiro caso é de olho no seu próprio dinheiro). Atletas e parasitas associados ganham muita grana, fama, poder, admiração. São parte essencial do movimento popular cotidiano e alvo da dedicação de todo tipo de gente, esses idiotas apaixonados por um esporte babaca que somos nós. E só o que o futebol dá de volta é "entretenimento"? É só esse cirquinho? Tirando ações filantrópicas de atletas mais abonados (muitas vezes mais pelo evento que pela causa) e aquela velha dinâmica do menino-que-poderia-estar-roubando-mas-se-encontrou-no-esporte, o que diabo o futebol realmente entrega pra sociedade que dá a ele sua alma?

Bosta nenhuma, eu digo. E chega dessa porra. É pouco, é nada. Uma máquina dessa proporção, com braços desse tamanho, tem que fazer muito mais. O potencial do futebol para melhorar a sociedade ao seu redor é imensa. Mas ao invés de cobrarmos dele exemplos, entregamos (ao jogo e a nós mesmos, torcedores circulando o gramado) apenas privilégios, o direito de xingar o outro de macaco, de viado, de vagabunda, o direito de chamar o outro de favelado como se isso fosse ofensa, o direito de sentar o dedo no cara da camisa de outra cor sem precisar responder por isso. O futebol deveria ser um instrumento para explicar pra um mundo cada vez mais atrasado e pra essas crianças que veem os seus Batmans no gramado de meião e chuteira que provocar é uma coisa, tirar sarro é uma coisa, ser intolerante com a condição alheia é outra.

E não é só porque eu tenho horror a esse humor de estereótipo, e também não é que eu seja o torcedor de comportamento ideal (e há exemplos - 1, 2 - no blog), o caso é que o futebol é uma delícia e é ótimo como expurgador de demônios. Só que ao invés desses demônios morrerem, eles vão se aconchegando nos espaços vazios da arquibancada e trazendo o pior de cada um de nós à tona. E, meu amigo, se a sociedade já é feia quando finge ser civilizada, imagina quando se deixa levar. Talvez haja um dever social muito maior aqui do que o próprio jogo, e já é mais que hora de fazê-lo prevalecer, sendo você um torcedor, um jogador, um cartola, um profissional da imprensa.

E se há quem diga que isso deixa o futebol chato, eu rebato: se você acha chato um jogo como esse Corinthians x São Paulo do último domingo só porque não pode expressar seus preconceitos em voz alta, seu problema não é com o futebol. Acorda.