quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Vingança, índios e salgadinhos fedorentos

Eu trabalho nesse lugar que eu trabalho há quase dois meses. É na Vila Mariana, é perto do metrô, é bom. Descobri, pouco antes de iniciar minhas aventuras aqui, que era possível ir andando do trampo pra casa (e vice-versa, mas isso significaria perder minutos preciosos de sono), desde que estivesse disposto a dar uma caminhadinha não desprezível. Eu sempre estou, então tenho feito o percurso da liberdade quase todos os dias desbravando as ruas da zona sul de São Paulo com nada mais que minhas pernas, minha mochila e minha vontade de correr esse mundo em busca de vingança contra o assassino de meu pai.

Meu pai tá vivo, eu que me deixei levar, perdão.

Ainda no começo do trajeto, onde cruza a Vergueiro com a Lins de Ivans Vasconcelos, há uma praça pequena e dentro dela uma quadra de futebol de salão. Os portões estão sempre abertos, qualquer um pode chegar e jogar. Só que...

Na primeira vez que eu passei lá, estava indo ensaiar com a gloriosa e achei estranho uma quadra pública vazia numa cidade do tamanho de São Paulo num país devotado ao futebol como o Brasil. Na segunda vez, já nesse circuito trabalho-casa, a quadra continuava vazia. E continuou vazia todas as vezes que eu passava lá, apesar de sempre ter pessoas na arquibancada improvisada fazendo aquilo que a gente sabe que os jovens fazem de melhor: viver. Poderia-se achar que essa presença de pessoas em estados alterados de consciência contribui para afastar os potenciais jogadores, mas não, qualquer um que já desbravou o futebol amador nesse país sabe que não é futebol se não tiver maconha e armas de fogo.

Comecei a pensar, então, que a razão mais lógica para esse bizarro fenômeno era que a praça foi construída em cima de um campo de futebol indígena, onde os nativos de tempos mais simples batiam a sua bola jogando com as cabeças e aquela coisa toda. Por isso a quadra estava agora amaldiçoada pelos espíritos dos índios craques do passado, como aquele grande time do Tabajara que venceu o Guarani e levou a Copa Vergueiro de 1490. Ora, o que mais poderia ser, certo?

Bom, poderia ser que as pessoas não tavam afim de jogar naquela época, porque agora o diabo da quadra tá sempre cheio e eu perdi o timing do post. Mas num dia a gente perde, no outro a gente ganha: descobri também nesse trajeto um mercado que vende Magikitos, o pior salgadinho do mundo. Dá pra sentir o cheiro daquela desgraça com o pacote lacrado. É irresistível.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Vamos faturar

Além de escrever nesse blog e ter um trabalho normal, alguns de vocês devem saber que eu tenho uma banda. Ah, a banda.

Pois a banda está lançando coisas: é um EP com três faixas chamado 13 minutos, porque ele dura 13 minutos. Não passou o caminhão da criatividade hoje. As três músicas foram escritas por mim, e devo advertir que escrevendo músicas eu sou ainda pior que escrevendo prosa, então você imagine o nível do negócio. Pior, são três canções sobre o amor, e eu não sei nada sobre o amor, porque quando eu pensei que era amor, não era, era cilada.

Como deu um trabalho do caralho pra fazer esse negócio - trabalho suficiente pra sobrescrever o tempo que eu teria para compor um texto para esse blog e cumprir a meta mensal - sinto que é meu dever vir aqui avisá-los e apresentá-los a essa pérola da música pop velha-demais-pra-ser-emo-jovem-demais-pra-ser-careca-mas-a-genética-é-foda-ops-estou-fugindo-do-assunto. Aí se vocês quiserem vocês ouçam, se não quiserem não ouçam, se gostarem espalhem para os amiguinhos, se não gostarem ninguém está aqui para julgar.


Agradeço a atenção, voltaremos à programação normal no top de 5 segundos.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Bunda pra cima

A deusa da coordenação motora nunca beijou meus lábios. Quando pequeno, costumava deixar os lápis caírem toda hora, o lanche estava sempre no chão, meus dedos frequentemente ficavam grudados nos palitos de sorvete nas aulas de educação artística. Lembro de brigar com a minha mãe por ela ter-me feito defeituoso, e ela, sem sequer tentar explicar como as coisas são feitas, simplesmente colocava a culpa no meu pai. Mas eu não brigava com meu pai, não tinha essa liberdade.

O tempo passa, a gente - supostamente - fica mais esperto e passa a evitar certos eventos que ponham à prova nossas descapacidades. Dançar, por exemplo, nunca. Nem qualquer coisa que exija movimentos coreografados, como artes marciais (triste a vida de um homem nessa época em que há mais oportunidades para dançar que para brigar). Mas sendo a vida adulta esse mecanismo intrincado preparado para nos foder de qualquer maneira, não dá para se esquivar de tudo.

Não dá pra se esquivar, por exemplo, de receber o troco em moedas no caixa do mercado ou na catraca do ônibus. E moedas são coisas traiçoeiras, vivas, mancomunadas com Satanás. Ao contato da minha mão elas pulam e correm e rolam e fazem todo tipo de movimentos aleatórios e imprevisíveis. Ao chão elas vão, invariavelmente.

A esta altura cabe informar ao leitor, que me conhece há três parágrafos, que no meu quintal não há árvore de dinheiro. Por necessidade financeira e respeito aos descompassos sociais que nos entristecem publicamente é preciso pegar as moedas no chão. Não é uma tarefa digna, não. Desenhemos esse cenário sem os detalhes superficiais: é um homem adulto com a bunda pra cima.

Então corra os olhos pelo fio dessa meada: moedas estão caindo aos meus pés constantemente. Várias vezes por dia, até. E eu estou lá pegando-as, apontando o canhão para a lua, engolindo a dignidade que me quer escapar pelos olhos. Eu passo, portanto, boa parte da minha vida com a bunda pra cima. É uma posição vulnerável, talvez a mais frágil de todas. Você sabe do que eu estou falando. E ficou impossível separar as duas coisas: pra mim, a vida são os pequenos intervalos de tempo entre os momentos em que estou oferecendo meu cu ao mundo em troca de algumas moedas. Não é algo bonito de dizer, muito menos de admitir, mas é isso, não é?

Eu penso nisso, penso em como tudo pode ser visto como uma metáfora sem graça para a existência, e ainda me sinto empurrado pelo ventos da injustiça a culpar a minha mãe, a que me fez quebrado. Eu poderia ser surdo, eu conseguiria viver soluçando permanentemente, mas isso, isso é muita humilhação.

O leitor há de achar que estou reclamando de barriga cheia, que há coisas piores, que ao menos eu tenho moedas para pegar no chão. É verdade, admito. Mas não leia isso como um manifesto, pois não é meu objetivo incomodar a agenda de preocupações de ninguém. Quero apenas contar a minha história, nem que seja para trocar minha vergonha pelo riso alheio. Você pode achar que eu estou me rebaixando, que faço tudo isso para receber escárnio. Mas, no meu caso, é melhor receber gargalhadas que receber moedas. Afinal, é preferível o risco de rirem de mim que o risco de comerem minha bunda.

Ps: O autor achou por bem deixar claro que essa é uma obra de ficção, sem relação com a vida real - exceto a parte sobre não gostar que lhe comam a bunda.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

TC (ou algo assim)

A gente começou a montar o time com primos e amigos. Depois foram chegando os amigos dos amigos, os primos dos primos, os amigos dos primos e a coisa foi crescendo. Viramos um time com titulares, reservas, dois quadros. Tínhamos até uniforme, que era, divertidamente, o uniforme do São Paulo (o pai de um dos caras trabalhava na distribuidora da Adidas no Brasil, à época fornecedora de material esportivo do São Paulo). Estávamos com tudo.

Então fomos disputar nosso primeiro festival, e o adversário era o time de uma escolinha que treinava na mesma quadra. Não lembro o nome, era alguma sigla boba, tipo TC. Estávamos prontos, estávamos confiantes, íamos debulhar. Aí o juiz apitou e eles começaram a trocar passe, um dois três, um corria pra cá, um corria pra lá, chute, gol. 1 a 0 pro TC (ou o que quer que seja), nem um minuto de jogo, nem na bola a gente relou. Eu nem entendi o que aconteceu, como assim eles corriam sem a bola? Que loucura isso, rapaz. O jogo acabou uns 9x3 (pra eles claro), e eu fui até expulso - não fiz uma falta durante o ano inteiro, mas fui expulso mesmo assim.

O TC virou nosso rival, nosso Gary, nossa baleia branca. Jogamos de novo outras vezes, perdemos de novo todas as vezes. Quando estávamos com o time mais forte, mais bem treinado, voando, quando o próximo festival ia acontecer e a gente ia, finalmente, ganhar, eles cancelaram e aí o jogo foi contra outros caras (perdemos também e o time acabou depois disso). Esse último parágrafo não importa muito, mas eu queria contar essa parte da história.

Quarta feira o São Paulo (que usa uniforme igual ao que a gente usava) vai jogar contra o Cruzeiro em Belo Horizonte. E quando eu penso nisso, lembro daquele primeiro jogo contra o TC, deles tocando bola e da gente tonto sem saber pra onde correr tapando o olho pra proteger da areia que subia enquanto eles corriam feito pés-de-vento. Um time que sabe os fundamentos do futebol contra um que tem a resistência emocional de um papel molhado. Naquele ano, o ano do nosso time, o São Paulo foi campeão paulista, tinha França, Denilson, Raí voltando. 15 anos depois, eles viraram a gente. Quem sabe nós não poderíamos ser eles agora.

O curioso é que eu me lembro desse período da minha vida, meus 13 anos, como um dos mais felizes. Mas quando o juiz apitar o fim do jogo na quarta feira e o layout do placar da Globo estiver quebrado porque não prevê três dígitos, a única lembrança dessa época feliz pairando suspensa no ar será a da calamidade. Qual a lição que tiramos disso, hein?

Exato: nunca seja feliz, ou acabará contribuindo decisivamente para a humilhação de 15 milhões de pessoas. Que você não venha me dizer que nunca aprendeu nada com esse blog.