quarta-feira, 25 de setembro de 2013

A falácia da volta por cima

Quando um dos milhares de ressecados que pagavam ingresso só pra vaiar seu sacrílego ex-ídolo de Telecaster pendurada no pescoço gritou "Judas!", ele fez uma zoeirinha, mandou a The Band tocar alto pra caralho e disparou a maior versão de Like a Rolling Stone que nós já ouvimos. Vamos esquecer que recentemente o ex-ex-ídolo desejou que aquele cara apodrecesse no inferno e foquemos no mais importante: que momento glorioso aquele deve ter sido, de dar a resposta na cara do filha da puta na hora, de superar os que te opõem, de transformar um jogo perdido numa garbosa vitória.

Esses momentos de volta por cima, de esfregação na cara, ah, eles devem ser maravilhosos. Digo "devem" porque, claro, isso nunca me aconteceu. Nunca. Jamais. Pode ser só o meu complexo de inferioridade me mandando sentar no cantinho e sair do caminho das pessoas - até na vitória: quando estava na primeira série ganhei um sorteio em que concorriam todos os alunos da escola e levei uma cesta cheia de coisas provavelmente deliciosas. A irmã de um xará da minha sala, que estava na quarta série (era uma adulta já), veio depois e me disse que eu deveria dar a cesta pro Thiago 1, porque nosso nome era igual, então que diferença faz. E, naquela hora, eu achei que deveria dar mesmo.

Mas todos sempre contam tantas histórias de quando fizeram alguém calar a boca, de quando derrubaram paredes com seus argumentos fantásticos, de como acertaram um lançamento sensacional no último minuto daquela semifinal do campeonato e o jogo estava empatado. E eu nada, nada (uma vez eu tava com raiva da falta de dedicação da equipe e quando a bola chegou pelo alto dei-lhe uma canelada de qualquer jeito e ela foi vuuum, no ângulo, e seria legal se a gente não estivesse levando uma goleada). Até que ocorreu-me um negócio.

Estatisticamente, o número de pessoas que conta histórias em que elas perderam no final é de zero por cento, com margem de zero pontos percentuais. Não existe. Eu nunca ouvi alguém no metrô falando "e a professora disse que eu não parava de falar e tava atrapalhando quem queria estudar e aí eu comecei a chorar porque poxa vida eu posso estar estragando o futuro brilhante de alguns colegas então pedi desculpa e saí correndo". As pessoas sempre são fodonas, até quando fazem coisas horríveis - eu juro pelo Charizard que enquanto estava na fila pra pegar o ônibus de volta do Rock in Rio ouvi um segurança contar sobre uma mulher que reclamava que ele havia sentado a porrada nela e ele respondia "bati, sim senhora". Você sempre vai ouvir a história do cara que pegou duas minas ao mesmo tempo na balada, mas nunca vai ouvir esse cara contando de quando broxou batendo punheta.

E sabem qual é a verdade? Todos mentem. Todos vocês. Eu estou aqui, sendo honesto com os registros históricos e relatando os tapas na cara mais sensacionais que a vida me deu e vocês tão aí contando vantagem em histórias que vocês na verdade saíram com o rabo entre as pernas. Canalhas, mentirosos! Uma prova: nenhum - nenhum - desses momentos de glória dourada aconteceu na minha presença. E vocês também nunca testemunharam nada do tipo acontecendo com terceiros.

Porque ninguém ganha nessa merda. Somos todos perdedores, patéticos abaixadores de cabeça. Até o Bob Dylan fazia musiquinha tirando onda de everybody must get stoned mas devia chegar no hotel e chorar até soluçar enquanto abraçava os joelhos e dizia "eu só queria ser amado". Sabe aquele episódio do Seinfeld que o cara zoa o George e ele pensa numa resposta tarde demais então recria todo o cenário pra poder usar aquela resposta e quando usa o cara zoa ele de novo? Então, somos todos o George. E o outro cara não existe, é um anjo enviado para nos ensinar que nós não somos nada.

E todo esse post poderia ser o MEU momento de superação, mas agora eu tô arrependido de ter dito coisas tão duras e quero pedir desculpas a todos. Aceitem essa cesta de coisas provavelmente deliciosas como retratação.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Bruce e Clarence



Quando comecei a planejar um texto sobre os dois shows do Bruce Springsteen que vi na semana passada, me vi numa encruzilhada: poderia fazer um relato descritivo e elogioso (muito elogioso) dos shows ou enfiar logo a faca na barriga e rasgar pra ver o que saía de dentro. Escolhi o segundo.

Eu comecei a ouvir a música do Boss pra valer com o Born in the USA e, vou confessar, não saquei de cara qual era todo o apelo. Achei legal e pãns, mas pra justificar estar no Olimpo do rock 'n' roll faltava coisa. E algum tempo depois eu voltei dez anos na história da música e ouvi o Born to Run. Vixe.

De cara, eu não conseguia acreditar que Thunder Road estava acontecendo. Aquilo não podia ser verdade. Tenth Avenue Freeze-Out, Night, Backstreets (meu deus!), Born to Run (meu deus!), She's the One, Meeting Across the River, Jungleland (meu. deus. do. céu) e eu não era mais a mesma pessoa. Depois disso, o Born in the USA (não confunda os nomes) passou a fazer sentido, e aí apareceram dois caras: o próprio Bruce e um tal de Clarence Clemons, lendário saxofonista da E Street Band. O Bruce era o cara que eu queria ser, ou ao menos o cara que ele era naquelas músicas. O Bruce era meu herói. Mas o Big Man era meu amigo.

Você sabe, alguns dias são melhores que outros, e - disso você não sabe - eu sou um autorrecluso, uma ostra escondida na concha de tu madre. Daqui não sai nada, porque eu não tenho forças nem talento nem vontade pra articular as minhas pendengas particulares em abstrações verbais. Sinto muito, não me leve a mal, mas eu sou meu bunker. E naqueles dias que não eram melhores que os outros o Clarence vinha e aquele saxofone me carregava pra uma terra de compreensão e fraternidade. Era como se as ondas sonoras se encaixassem nas minhas ondas cerebrais e foda-se tudo. É meio engraçado (e meio bicha também) porque eu nunca gostei de sax, tirando as precisas intervenções de Bobby Keys com os Stones. Tem músicas que são um soco na barriga, mas tem músicas que são um abraço (e o nível de bichice está atingindo níveis alarmantes).

Mas aí BUM!, Big Man morreu.

Lembro que quando eu soube da notícia imediatamente abri no Youtube uma versão ao vivo de Jungleland e chorei copiosamente durante o solo de saxofone no meio da música (de porta fechada, porque eu só sou um mariquinha extra-oficialmente). Não é que isso fosse mudar muita coisa, porque eu nunca vi o cara, se algum dia visse não falaria com ele, se falasse ele não viraria meu amigo, se virasse eu ia continuar não contando nada e reservando meus mimimis pras gravações de estúdio. Mas a morte tem um peso esquisito.

Mas, ah é, os shows. Ainda que houvesse toda a energia pulsando e sangrando e jorrando sobre todas as pessoas como se o apocalipse estivesse acontecendo do lado de fora e tava todo mundo pouco se fudendo pra isso, eu ainda via a morte ali, como uma sombra. Não digo isso de maneira pejorativa, era como se fosse mesmo o fim, como se Bruce estivesse cantando à beira do abismo (e roubo isso deslavadamente de um ensaio do Greil Marcus lá dos anos 70), como se não sobrasse nada além de estar ali e inventando um novo Messias para um momento de desespero. O amigo se foi, mas o herói ainda estava lá, sobre o palco, sobre as grades, sobre as pessoas, dançando no escuro, de coração faminto (não resisti).

O leitor mais dedicado talvez se lembre que eu comecei um texto sobre o show do Paul McCartney em São Paulo vasculhando as razões que fazem um show ser o melhor da vida. Não se preocupem, nada mudou nesse departamento, o velho Macca ainda fez o melhor show que vi na vida. Mas nos do Bruce eu vi a morte, e sinceramente não sei dizer de qual gosto mais.

Talvez eu precise começar uma segunda lista.

domingo, 8 de setembro de 2013

O Brasil

"O Brasil", enquanto entidade demoníaca representativa de tudo que há de ruim no planeta, ganhou bastante popularidade nos últimos tempos. Após o início da onda de protestos que tomou as ruas do país porque era mais fácil ir pra casa a pé que pagar aquele preço da condução (brincadeira), as evocações a esta abstração maligna tem sido mais e mais constantes. Mas eu gostaria de pedir alguns minutos do seu tempo e alguns centavos da sua paciência para tentar desfazer uma injustiça cruel aqui.

O Brasil, agora sem aspas, é bastante maravilhoso. Não digo com ufanismo nem pachequismo atochado, digo como constatação. Vejam só: é um lugar grande pra burro, boa parte dele na beira do mar, e tantas outras partes pontilhadas por maravilhosas maravilhas como a floresta amazônica, o pantanal, a mata atlântica, as cataratas do Iguaçu, Pirituba (brincadeira). Aqui, tirando umas enchentes, você não vê nada daquelas coisas que devastam os países dos outros: não tem vulcões, não tem terremotos, não tem nevascas, não tem furacões, não tem tsunamis, não caem meteoros, não tem desertos, o calor não é tão quente assim, nem o frio é tão severo. Tem tipo um milhão de bichos e um trilhão de plantas e um dozilhão de doenças venéreas (que só pega quem transa, veja bem). O solo é tão fértil que se você jogar um feto na calçada ele vai atravessar o asfalto e em nove meses você terá uma árvore de bebês no seu bairro.

Resumindo: pra quem fala que "o Brasil é um lixo porque o novo Xbox custa 2200 reais", é melhor isso que pagar 30 centavos nele (sei lá quanto custa lá fora) e perder um mês depois porque passou um tornado e levou embora (e de quebra ainda levou sua casa, seu carro e sua vó).

Nesse ponto o adorável leitor deve estar já pulando da cadeira e assustando os vizinhos aos gritos de "mas os políticos também são Brasil, porra!". Ei, calma um minuto, psh, psh, passô. Eu sei, são Brasil sim. Mas vamos, para fins didáticos, não segregar os políticos a um grupo próprio; vamos incluí-los na categoria "pessoas". Porque é isso que são, afinal, como eu e você. Todas as qualidades negativas que se atribuem aos nobres parlamentares são apenas produto de sua natureza humana, e se eles se corrompem isso é apenas uma possibilidade já contemplada na nossa programação (o código deve ser alguma coisa tipo if oportunidade == true). Sem contar que nós, civis, plebeus, populacho (como você preferir chamar), não estamos exatamente isentos de culpa.

Então, chegando finalmente aos finalmentes, ainda que nós sejamos parte dessa gloriosa nação, anexar a qualquer coisinha a etiqueta "o Brasil é uma merda" é um tanto injusto com todos os outros aspectos que são dignos de aplauso. O que é parte da injustiça que eu menciono no primeiro parágrafo. A outra parte é: quando a gente fala assim, na terceira pessoa ("o Brasil", "esse país", etc), está dando um passinho pro lado e saindo do rumo do torpedo da responsabilidade. Ponhamos a mão na consciência um minutinho, vai: o Brasil é firmeza, a gente é que deixa a desejar. E não vamos resolver essa pendenga fingindo que o problema não é conosco.

Agora que eu avisei qual é o problema, você vai lá e resolve porque minha parte eu já fiz (brincadeira).

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Soneca

A vida é dura pra quem acredita estar destinado a grandes coisas, - tipo cem mil dólares, mulheres, automóveis, mulheres, iates, mulheres, mansões, mulheres - mas é mais fácil negociar com o universo quando as suas pretensões são furrecas. Eu sou uma pessoa simples, de gostos simples, de ambições recatadas. E poucas coisas na minha rotina - quiçá fora dela também - me abundam com mais satisfação que a soneca do despertador.

Este blog já viu, em doses menores ou maiores, meus relatos lamurientos sobre minha incompetência para dormir. É difícil, é difícil. Talvez só exista uma coisa em que eu seja tão ruim quanto dormir: acordar. Então poder adiar esse sofrimento, nem que seja por só nove minutinhos, já me causa mais prazer que qualquer outra coisa que eu vá fazer depois de apertar o "desligar" ao invés do "soneca" (ou snooze, para quem é metido a besta).

Já me disseram diversas vezes o quanto isso é nocivo, que eu sou um preguiçoso, etc. E por tanto tempo eu abaixei a cabeça, me deixei abalar, humilhado, derrubado. Aí me ocorreu uma coisa.

Vivemos para o amanhã, senhores. Os deuses do cotidiano conseguiram nos estragar de tal forma que nos é impossível perceber o valor (positivo ou negativo) do que está acontecendo nesse instante. Nós agradecemos e comemoramos e compartilhamos siglas anglo-saxônicas toda vez que chega a sexta-feira. Mas sabe o que a gente faz na sexta? Trabalha. Assim como na segunda. Bom não é a sexta, porra, bom é o sábado. Mas ninguém comemora o sábado. Nos inunda de prazer a perspectiva do descanso, mas não o descanso em si. Da mesma forma, é comum ver pessoas reclamando de como não gostam do domingo, coberto que está pelas sombras da danação da segunda-feira. Só que o domingo - aceitem - é melhor que a sexta. Muito melhor, nem compara. E isso segue pra tantas outras coisas, e nesses tempos de câmeras de bolso nem se fala. Tem gente que vai a um show e passa mais tempo ajustando as configurações do aparelho e procurando o melhor ângulo do que vendo a banda em si. Que, sabe, é meio que o motivo de estarmos todos ali.

O problema é que só o agora existe. O antes é uma mancha de sangue estampada na ladeira da memória e o depois é uma paisagem sem contraste no horizonte. Esse é o valor do soneca: é prazer imediato, sem adiamentos, sem pensar nas consequências. E eu tenho overdose de soneca todos os dias: meu despertador começa a tocar às 7h50 (já foi 7h20) e eu vou levantar lá pelas 9 (quando estou inspirado, só 9h15 ou 9h20). Não chego no horário num dia de trabalho desde 1996. E não ligo. Se ser feliz é motivo de demissão, pode demitir, é sem dúvida uma justa causa. Eu não quero promoções, não quero progressão salarial, não quero uma carreira enfeitada com lantejoulas e medalhas. Eu quero só mais cinco minutinhos.