domingo, 24 de fevereiro de 2013

Quadrinhos, narizes e um trem para o passado

A primeira vez que eu vi que levava mais jeito pro desenho que as outras pessoas foi quando eu tinha 10 anos. Inspirado pelos Cavaleiros do Zodíaco, que a gente gostava tanto, eu e a molecada da quarta série resolvemos fazer uma revista em quadrinhos, com histórias de cada um. A revista nunca aconteceu, mas o projeto me abriu os olhos.

Então passa-se um milhão de anos, eu fiz ilustrações de todos os tipos, mais milhares de páginas de histórias em quadrinhos, mais desenho na rua pra Copa, aprendi a usar papeis diferentes, aprendi que não sabia usar pincel, aprendi a usar o computador, e cansei. Me faltava disciplina e dedicação pra melhorar e pra investir, e como eu tinha um emprego que pagava minhas contas e tomava grande parte do dia, o desenho ficou pra lá, como também ficaram a ficção e a contação de histórias. De quadrinhos, só a contemplação; de criação, só esses textos miseráveis do blog e as musiquinhas.

Se você tiver boa memória (ou fizer a bondade de ler esse post aqui) vai lembrar que no começo do ano passado eu larguei mão do desenho oficialmente. O que você provavelmente não sabe é que dois meses depois lá estava eu fazendo um curso de quadrinhos no Sesc Pompeia, com o grande Lourenço Mutarelli. Eu fui lá porque o Lourenço escreve romances, e era essa a minha miragem na época. Acabei sendo sugado pela força centrípeta de volta para o centro do redemoinho, nesse lugar onde só ficavam as minhas memórias de tempos mais felizes e igualmente solitários. Desenhei um bocado, comprei uma mesa, uma luminária e um monte de canetas nanquim descartáveis vagabundas.

Mas não é igual, porque dói. Literalmente, fisicamente. Tenho dor nas costas, tenho dor no braço. Minhas pernas ficam se mexendo, a paciência escorre, a careca sua por causa da luz agressiva em cima dela. Desenhar quadrinhos deixou de ser o exercício de arcadismo mental que era e passou a ser um estorvo. Mas ainda há essa conexão com o centro do furacão, e então eu prossegui, uma página aqui, depois mais quatro páginas, depois mais quatro. Consegui, no final. Eba.

Não sei se prosseguirei com isso. Se me conheço, não vou; se quiser ser a pessoa que eu gostaria de ser, até o final do ano tenho um álbum pronto. Deve acontecer algo no meio desses dois, e se houver coisa que valha a pena e seja pertinente eu publico aqui. Por ora, posso dizer que minhas quatro páginas de desenhos fofos sobre adultério e um futuro drogado serão publicadas numa revista junto com todos os outros adoráveis talentos que frequentaram o curso comigo, ainda que a uma distância segura (saí de lá com o apelido de psicopata, vejam bem). Posso dizer também que foi bom voltar a produzir quadrinhos, mesmo com a dor, e conviver com tanta gente legal mesmo que - como dito anteriormente - a uma distância segura.

E foi bom também poder ter uma real noção do patamar em que se encontra meu traço. Eu já não desenho tão bem quanto antigamente, e certamente muito pior do que eu poderia se tivesse insistido nessa vida, mas se tivesse insistido nessa vida eu não teria hoje esse salário maravilhoso, esses videogames de última geração, essa guitarra irada e essa tristeza que suga as minhas forças como um parasita. Foi uma troca boa. E, pra ser honesto, eu gostei dessa textura de ferrugem sobre os desenhos; não só me fez dar mais valor a cada quadro alcançado como me força a elaborar mais certas coisas que antes eu fazia por instinto e, até por isso, sem muito cuidado. Eu desenho narizes hoje, acho que não desenhava um nariz havia uns dez anos.

Não sei como terminar esse post, então vou resumir: não desenhava mais, voltei, doeu, narizes. E é isso, adeus.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

As coisas estão melhorando

O sol já tinha se escondido havia algum tempo, e tudo que restava na paisagem era o recorte do Mateus desenhado pelos traços brancos da lua. Ele finalmente enterrou todas as partes em lugares diferentes do parque, e isso praticamente enxugou todas as suas forças - e olha que o Mateus tem um bom porte físico e é acostumado a trabalhos braçais. "Que merda", ele pensou, "por que eu continuo fazendo isso?". Agora era tarde pra voltar e inútil reprocessar o arrependimento, até porque as atividades ainda não estavam encerradas: faltava limpar, recolher, apagar todos os rastros. E, pior, ele ainda tinha um compromisso pouco depois, e, àquela altura estava fedendo a suor, terra e sangue.

"Ela tem olhos bonitos", era o que todos diziam da Angelina, pra não dizer que ela não tinha era nada de especial. Os olhos eram claros, mas não chegavam a ser bonitos, e não conseguiam melhorar muito a sua cara alongada, o nariz achatado e a boca torta. Não era necessariamente feia, e os seios, apesar de caídos, com o sutiã certo conseguiam causar uma boa impressão em quem não estava habituado ao convívio com essa área do corpo - especialmente os amigos nerds da Angelina, que pareciam se derreter por ela. Mas ela tem um namorado, um novo namorado, e ele é alto, tem braços grossos e um emprego fixo - muito embora ela ainda não tenha sacado muito bem o que ele faz. Hoje eles vão ter um jantar romântico num restaurante mais ou menos chique da cidade. Os garotos da idade da Angelina mal tem dinheiro pra comprar pão de queijo congelado no mercado, mas o Mateus tem até Vale Refeição. Ele nem deveria precisar mostrar o RG pra provar que é maior de idade, bastava apresentar o Sodexo - mas a essa altura Angelina já estava vagando muito longe, e ela ainda nem tinha escolhido o sutiã certo para essa noite.

O Goku na camiseta do Marcos já não vestia vermelho havia alguns anos, mas ele ainda gostava dela, desbotada e cheia de bolinhas brancas. A camiseta era uma espécie de escudo e cartão de visitas: sim, eu gosto dessas coisas - ela dizia por ele -, podemos pular a parte em que eu me envergonho toda vez que me perguntam o que eu curto. Ele só sentia vergonha de falar, verbalmente mesmo. Se a pessoa descobrisse isso sem precisar perguntar, ele não fazia objeções. E funcionava como um filtro também: o Marcos nunca foi bom de fazer amigos, e a camiseta garantiria que só se aproximariam dele quem tivesse alguma coisa em comum. Ironicamente, foi por ter muitas coisas em comum que ele nunca despertou a reciprocidade amorosa da Angelina. Mas mudar agora seria se entregar, se render, e, pior, admitir. Então o Goku vai continuar usando essa roupa até ela ficar branca.

As aulas de violão iam mal, exatamente como antes foram as de piano, violino e harpa. Andreia dizia que gostava tanto de música que precisava aprender a tocar algo, mas a verdade é que o tipo de música que ela gostava era feito por sintetizadores e softwares, e ela não conseguia encaixar aquilo nas cordas de nailon do violão. O problema é que ela já tinha 19 anos e nem ideia do que fazer da vida. Não tem faculdade na cidade, e ela não passou em nenhum dos vestibulares que prestou nas cidades vizinhas - veterinária em um, nutrição em outro, educação física, publicidade. Trabalhou dois meses como secretária de um advogado - que a assediou -, outros três meses na farmácia - envenenou um velhinho porque confundiu as caixas dos remédios -, e já vai fazer um mês como balconista na loja de gibis que o irmão frequenta. Ela não sabia nada sobre quadrinhos, mas o Marcos explicou algumas coisas, o dono da loja outras, e os clientes que vão lá já sabem exatamente o que querem, então ela nem tem tanto trabalho assim. Mas ela quer mais, embora não saiba o quê. A mãe dizia que ela era inteligente, mas ela sabia que não era, e o Marcos sempre fez questão de confirmar esse ponto de vista, naquela cruel sinceridade fraternal que a gente acha que vai fazer bem no futuro. Também não era lá muito esforçada, mas se o mundo é assim tão democrático também deveria guardar um lugar pra quem é burra e preguiçosa. Ela achou que esse lugar pudesse ser a música, mas já descobriu que essa carreira pode ser muito difícil pra quem não consegue fazer nem um mi menor.

O escritório do doutor Munhoz estava às moscas, especialmente depois que correu na cidade a história de ele ter tentando se aproveitar da antiga secretária. Não era verdade, e esse tipo de comportamento coletivo de cidade do interior já estava lhe sugando as forças. Nada disso era o que ele queria, mas era tudo parte do plano: mudar para uma cidadezinha pacata, levar a filha pra morar com ele e usar o ambiente hospitaleiro e tranquilo para se reaproximar dela. Mas mudanças são difíceis, e a adolescente nunca engoliu muito bem o fato de ter que largar a mãe pra ir morar com um pai ausente que ela desprezava. Pra ser sincero, também não era isso que Munhoz tinha em mente, mas você não pode deixar a própria filha desamparada quando a mãe dela é internada numa clínica de reabilitação. Ele viu como uma oportunidade de mudança, de limpeza; na prática, está falido, viu a carreira e a reputação irem para o lixo só por querer ser legal demais com a funcionária incompetente e, o pior de tudo, a filha não só não passou a respeitá-lo como não voltou pra casa na noite passada. Numa cidade desse tamanho não dá pra esconder a própria presença ou - ele descobriu - a própria história, mas a menina não estava em lugar nenhum. "Ela deve voltar logo", ele pensava, sem saber se a abraçaria ou castigaria - um desses problemas de ser um pai inexperiente, mesmo que a filha já tivesse a mesma idade que ele tinha quando irresponsavelmente engravidou a namoradinha do colégio.

A tarde estava agradável e a temperatura era ótima. Essa talvez fosse a única coisa naquele cidadezinha que a Alice gostava: o clima era sempre muito bom. De resto, ela não conseguia fazer amizade com ninguém, embora não se esforçasse nem um pouco para isso; sentia falta da mãe, da vó, da cadelinha preta; não conseguia suportar a presença do pai, o canalha que só aparecia duas vezes por ano e foi responsável por fazer dela uma desajustada social e da mãe uma alcoólatra. O pai sempre dizia que Alice o desprezava, mas a verdade era um pouco mais cruel: ela o odiava. Tanto que seu único momento de felicidade nessa nova vida juntos foi quando o senhor-todo-poderoso-advogado passou uma noite na delegacia acusado de aliciar uma subordinada. Ela ficou tão feliz que até engoliu a timidez e a antissocialidade e procurou a pobre Andreia para se aproximar dela. Não durou muito, já que uma hora a empolgação passou e tudo que ela via na garota era derrota e roupas feias. Mas esta tarde, em especial, estava agradável, tanto pelo clima quanto pela visão do rapaz moreno que descarregava algumas caixas aparentemente bem pesadas de cima de um caminhão. Ela não se lembrava da última vez que teve esse acesso momentâneo de paixão platônica, nem do quanto fazia bem. Mas então o Mateus olhou pra ela, e antes que ela pudesse apontar o rosto para o chão ele veio, simpático e sorridente. Entre perguntas constrangidas e poses calculadas, ele a convidou para tomar um sorvete no parque, agora que o sol começava a dar sinais de cansaço. "Ora", ela pensou, "um passeio ao por-do-sol com um moço bonito. As coisas estão melhorando".

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Hoje a festa é no mato

Quando eu penso na ideia de um país parando por QUATRO dias pra festejar, com direito ainda a mais doze horas pra curar a ressaca, eu gosto mais e mais do Brasil. É tão bizarro, tão absurdo, tão impensável uma coisa dessas nesses tempos de produtividade máxima e time is money que me dá até vontade de chorar de tão lindo.

Como eu não sou muito de festa, gosto de aproveitar pelo menos a folga. Esse ano eu vim para Ponte Nova, Minas Gerais, cidade onde moram vovó e vovô e de onde eu escrevo esse post, utilizando um artefato antigo feito à base de celulose chamado "Caderno" (um belo caderninho pautado com um cachorrinho fofo na capa que eu apelidei de Aldebaran). Ponte Nova é uma cidadezinha com 57 mil habitantes a uma hora de Ouro Preto, aonde a essa hora milhares de jovens devem estar bebendo, se lambendo e, credo, se divertindo. Aqui, entretanto, é tudo parado: só se encontram abertos meia dúzia de bares, cada um com uns gatos pingados. Mas a paz, ah, a paz.

Como minha família veio da roça, lá é meio que um passeio obrigatório. Tem mato, terra, mato, terra, mato, mato, terra, mato, terra, terra. Tem uns rios e umas casinhas e uns boizinhos e isso tá parecendo redação de minhas férias. Mas é tudo muito bonitinho, embora eu não entenda nada que as pessoas falam a maior parte do tempo (que fruta dá em que época, como matar os porcos pra ficar gostoso de comer, como exterminar os formigueiros pra pararem de comer as plantações - sério, é muita matança). Eu não moraria lá (o trabalho no campo não me cai bem), mas parece um bom lugar pra ficar fazendo música (se a maior parte das minhas músicas não fossem sobre ficção científica) e pintando (se eu soubesse pintar).

E, bom, tem o riozinho, a pracinha com igreja, umas capivaras e tal - uma típica cidadezinha do interior, e não vou me alongar mais. Mas eis que, das conversas e fofocas, eu percebo que todo mundo aqui tem parente morando em São Paulo, e esses parentes moram todos perto da minha mãe, fazem compras no mesmo mercado, vão à missa na mesma igreja. E, então, epifania! E se São Paulo for na verdade não uma megalópole que suga a sua alma e despedaça seu coração, mas um grande compilado de cidadezinhas? Fica mais agradável, se você for ver bem. Porque, na prática, quais as diferenças? Só a falta de árvores a má educação das pessoas o trânsito o ônibus lotado o metrô lotado o trem lotado o preço do taxi a Marginal o estresse as enchentes o barulho o mau gosto os olhos sempre grudados no celular as camisas polo com brasão bordado os ladrões os carros blindados as câmeras de vigilância os babacas a Folha a poluição a luz amarelada as vidas de plástico o abismo social a xenofobia o céu sem estrelas os animais comprados no pet shop os antidepressivos a complicação a tattoo a facul o face a breja

É quase igual.

Ps: esse post foi escrito alguns dias antes da data de publicação, então algumas coisas podem estar desencaixadas no tempo.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Androides sonham com ovelhas elétricas

A tecnologia anda a passos mais largos do que eu estou disposto a acompanhar, e a aceitação desse fato pode significar duas coisas: que eu estou ficando velho e/ou que eu estou virando hippie. Até queria virar hippie e tal, mas tipo aqueles malucos dos anos 60 que se entupiam de ácido e davam a bunda por aí, não esses de hoje em dia, esses regueiros que não tomam banho e acham que aquelas biroscas que vendem na rua são arte.

De maneira geral, eu não me oponho aos avanços tecnológicos e às mudanças de comportamento consequentes disso. Muitas vezes a vida fica mais fácil mesmo, e taí meu Kindle que não me deixa mentir. Mas tem coisas que eu não quero que fiquem mais fáceis, e há necessidades que eu não planejo acrescentar à minha vida. Dessa forma, eu sou normalmente a única pessoa num raio de cinco quilômetros a não ter um smartphone. E isso é deliberado, e não é revolta contra o sistema nem desejo de ser do contra. Eu já passo a maior parte do meu tempo acordado na frente de um computador com acesso à internet, quero pelo menos a possibilidade de cagar em paz.

Entendo que eu não preciso usar o celular no banheiro se não quiser, mas eu vou querer, e é esse o ponto. Cagar é uma parte muito importante da minha rotina, porque é meu momento de isolamento e purificação. É a hora de arrumar a mente, planejar as coisas, deixar rolar a criatividade - eventualmente eu confundo os fatores, a criatividade vai pra privada e o projeto fica uma bosta, mas faz parte. E eu não posso permitir que esse meu templo de paz e olor seja invadido pelos descaminhos da internet e dos jogos casuais. Seria o meu fim.

Como eu ainda não virei hippie, estou apertadamente preso por todos esses cabos que transmitem dados e eletricidade - eu ainda não estou wifi, sou mais devagar que o andor da tecnologia, vide primeiro parágrafo -, e a ausência de um smartphone é o meu único respiro, o único momento que eu tenho para apreciar as coisas boas da vida, como a cor do céu, o canto dos pássaros, uma sonora diarreia. É uma abstinência autoimposta, para manter minha integridade mental nos eixos.

E tudo isso funcionaria se meu celular não tivesse Bubble Town.