domingo, 30 de dezembro de 2012

Passando a régua

Eu poderia começar dizendo que muitas coisas aconteceram em 2012. Mas um ano tem 365 dias (ou 366, nesse caso), que é tempo pra caralho, e muitas coisas acontecem mesmo.

Eu poderia depois dizer o quanto eu mudei com as experiências que tive. O que seria mentira, porque mesmo que eu tivesse mudado alguma coisa, um objeto fora de seu estado natural tende a retornar a esse estado - e vocês não tem ideia da força da gravidade que reina por aqui.

Eu poderia então continuar dizendo que conquistei e fiz muitas coisas. Mas eu só fiz mesmo meia dúzia de páginas de histórias em quadrinhos e gravei uma demo com um ano de atraso.

Eu poderia dizer que realizei meu sonho, mas eu não tenho sonho nenhum. Poderia dizer que cumpri meus objetivos, mas isso também seria mentira.

Eu poderia terminar desejando um ótimo 2013 pra todo mundo. E eu até gostaria que isso acontecesse, mas vou só desejar que o próximo ano não seja pior.

O que, cá pra nós, já tá de bom tamanho.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

O Cachorro

Ele abriu a porta e percebeu que seu olfato não estava enganado. Voltou para o interior da casa, pegou uma pá e começou a recolher a montanha de cocô que O Cachorro gentilmente deixou em frente à entrada. Não é o tipo de coisa que o incomodava mais. No começo, quando O Filho levou O Cachorro ainda filhote para lá, balbuciando entre lágrimas e soluços que A Ex não queria o bicho em casa, aceitou adotá-lo sem pensar duas vezes. Em tempos de divórcio, é bom fazer pontos com as crianças, e além disso seria interessante ter outro organismo respirando na mesma casa e que pudesse atender pelo nome. Depois, quando O Cachorro começou a crescer demais, e finalmente ficou do tamanho de dois andares, Ele também não ligou muito. E quando precisava diariamente recolher a pilha de esterco que se acumulava sobre o seu capacho que tempos atrás dizia "Bem-vindo", também não recriminava o animal. Foi sua culpa não tê-lo ensinado o lugar certo de cagar, o que é um erro comum de donos de primeira viagem, embora poucos destes possam dizer que tiveram que cuidar de um vira-latas de seis metros de altura.

Quando o azulado do céu pendia mais para o negro que pro amarelo e Ela tocou a campainha, já não havia mais cocô nem resquício do seu cheiro. O Cachorro estava preso nos fundos, a casa estava belamente iluminada por luzes de velas, e o ar era preenchido apenas pelo aroma da comida sobre a mesa e o desconforto instigante que nasce do atrito entre as expectativas dos casais no primeiro encontro. Ela estava linda, e Ele já havia readquirido o jeito depois dos últimos encontros fracassados. Após jantarem e conversarem fluidamente, a campainha tocou mais uma vez.

O Vizinho estava furioso. A dicção ébria por trás do tráfego congestionado de cuspes e o bigode que cobria a boca tornavam impossível entender o que ele dizia, mas o tom de voz era familiar e já explicava tudo: O Cachorro escapou e fez bagunça no seu quintal. Sem graça, Ele pediu licença à encontrante e saiu para procurar seu pulguento.

Encontrou-o ainda na esquina, brincando com uma pilha de sacos de lixo. Notou, entre seus dentes, uma forma esférica e dourada, que refletia as luzes do poste. Ao pegá-la, viu que era oca, e que havia dentro um pedaço de tecido amarelado com o desenho de um mapa estilizado e uma marcação em X no que parecia ser a Colômbia ou a Venezuela.

Um tesouro escondido nos escombros de alguma desconhecida civilização pré-colombiana. Construções antigas acessíveis apenas por passagens na rocha sob os lagos azuis e limpos, mantidas em segredo durante tantos séculos. Fantasmas ancestrais, armadilhas ainda ativas, respostas para perguntas que a humanidade já desistiu de solucionar, locais jamais tocados por nenhum homem, o Eldorado, Atlântida ou qualquer outra cidade tão secreta que nem as lendas conheciam.

Ele arrumou o lixo, puxou O Cachorro pela coleira, pediu desculpas ao Vizinho, prendeu O Cachorro nos fundos - não sem antes verificar o travamento da corrente -, voltou à mesa, pediu desculpas a Ela e continuou sua história sobre como A Ex fugiu para a casa da Sogra durante duas semanas e prometeu voltar apenas se ele nunca mais conversasse com A Mocinha do RH, nem mesmo no trabalho.

Ele só queria uma vida normal.

domingo, 23 de dezembro de 2012

O mundo não acabou

- O mundo não acabou.

Quando o Rafa finalmente disse isso em voz alta, já haviam se passado cinco minutos, e todos já tinham percebido o que ocorrera - ou, pra ser mais exato, o que não ocorrera. O céu continuava lá em cima, a terra continuava embaixo, as pessoas continuavam suas vidas normalmente.

- Que caralho aconteceu?

A revolta da Rebeca - que nunca dizia um palavrão - era justificada. Ela passou as últimas 24 horas transando praticamente sem intervalos. Primeiro com o namorado, Marcos, depois com o Darlan, depois com o Rafa, depois com a Ana. Nem era exatamente o que ela queria, mas "o mundo vai acabar amanhã!", todos repetiam, e parecia um desperdício inacreditável não passar as últimas horas na Terra numa orgia com os seus melhores amigos, o tipo de coisa que ela jamais faria se houvesse amanhã.

O Marcos, diga-se, não era a favor da ideia. Ele queria ficar só com a Rebeca, mas aqueles filhos da puta ficaram forçando - e ele só não quebrou a cara do Darlan porque havia outras coisas a fazer e pouco tempo, e como a própria Rebeca não foi muito contra ele decidiu não lutar por uma causa perdida. Então saiu do apartamento, mochila nas costas e lágrimas na cara, e resolveu distribuir o amor que ele tinha guardado para a ruivinha fajuta. Abraçou desconhecidos, conversou com velhinhos, comprou cigarros para os mendigos, até tocou a escaleta toda babada da menina que performava Belchior com o pai. Poucas horas depois, foi atropelado por um Civic preto guiado por um rapaz que resolveu aproveitar antes que a nova Lei Seca entrasse em vigor, e perdeu mais sangue do que podia ainda na sarjeta da Líbero Badaró.

Ninguém ia muito com a cara do Darlan, mas o poder de influência que ele tinha sobre o grupo era incontestável. Às vezes ríspido, às vezes racional ao extremo, não era o melhor amigo de ninguém ali, mas mesmo assim o grupo jamais funcionaria sem ele. Portanto não era de se estranhar que tenha partido dele a ideia de reunir todo mundo no seu apartamento para que passassem as últimas 24 horas juntos: os grandes amigos, unidos até que o mundo acabasse. O trabalho começou bem antes, na verdade, desde o ano passado, quando ele abusou de seu poder de argumentação para convencer a todos de que o mundo realmente acabaria dia 21 de dezembro.

O Pato foi o mais difícil de convencer, pois era o mais inteligente. A bem da verdade, é provável que nunca tenha se convencido de que o mundo acabaria, e que ele só se deixou seduzir pela ideia de passar 24 horas no mesmo lugar que outras pessoas que não fossem seus pais ou seus colegas de trabalho. O caso é que Pato nunca se sentiu parte do grupo, ou parte de nada, e talvez esse tenha sido o grande trunfo do Darlan: fazê-lo sentir-se incluído, prometer maconha e álcool, e pronto: se o Pato acreditava que o mundo acabaria, a tese do líder estaria muito mais estofada.

Mas o Pato ficou lá, de canto, só chapando. Quando o Darlan sugeriu que era injusto só o Marcos poder comer a Rebeca e começou a confusão, ele ficou de fora. Quando o Marcos foi embora, só ele o abraçou. Quando todos resolveram estuprar a moça do cabelo pintado de vermelho - foi como ele viu a situação -, o Pato simplesmente saiu pela porta, desceu o elevador, pegou o ônibus e torceu para não estar drogado a ponto de não saber como voltar pra casa. Se o mundo realmente acabasse, ele morreria virgem - mas com dignidade, e isso haveria de valer algo no Juízo Final, no qual ele nem acreditava.

O que levou o Pato a achar que aquilo era uma filha da putagem organizada pelo Darlan era que havia outra moça no apartamento: a Ana. E ainda que aquela japonesa toda tatuada e com uma mancha de nascença enorme na bochecha esquerda não fosse o tipo de mulher que parasse o trânsito, se o mundo iria acabar logo, não lhe parecia justo que a esnobassem completamente. Mas a Ana nunca foi o tipo de gente que encanava demais com as coisas. Talvez por isso todos achavam que ela era a mais legal do grupo, embora sua gentebonisse fosse, assim como as tatuagens e os piercings, apenas camadas de escamas que ela vestia pra que ninguém notasse seu complexo de inferioridade, sua notória perspectiva de fracasso na vida e, claro, a mancha enorme na cara. E todas essas camadas foram obliteradas a golpes de marreta quando, depois de tanto tempo, a Rebeca simplesmente a convidou para fazer amor. E então, depois de passar mais de vinte horas observando cenas abjetas, perdendo o respeito pelos amigos e se sentindo humilhada, ela recebeu a proposta de passar as últimas horas da sua vida sendo amada pela sua melhor amiga, de um jeito que ela nunca esperou.

Rebobina.

- O mundo não acabou.
- Que caralho aconteceu?
- Calma - disse Darlan, lento -, é um processo, não acontece de uma hora pra outra.
- Não é o que você tinha dito, você disse que acabaria de uma vez, que a gente não ia nem ver.
- Calma.
- Calma porra nenhuma, vou ligar pro Marcos.

Ela ligou. Outra pessoa atendeu. Página de rosto com reticências no centro.

- E aí? - Rafa perguntou.
- É. Acabou.